Monday, June 29, 2009


Cairo, dia 2 de Julho, 2009

“WORKSHOPS DE JOANA S. EM PORTUGAL, ITÁLIA E EGIPTO – INSCRIÇÕES PROMOCIONAIS, AGORA!

*** EGIPTO – Curso intensivo – Julho e Agosto – no CSA Maadi (infos através do email: dancemagica@gmail.com)

*** ITÁLIA – Cursos intensivos dias 26 e 27 de Setembro (programa brevemente disponível)

*** PORTUGAL:

Joana Saahirah do Cairo em
Portugal (Lisboa) - Dias 19 e 20 de Setembro de 2009
Workshops de Dança Oriental estilo do Cairo- “NEW CRAZY TABLA SOLO” e Saiidi moderno (Folclore do Alto Egipto)
Com DVD das coreografias disponível no evento!

Programação:

Sábado, dia 19 de Setembro:
Das 10.30h às 13.30h - Bloco I do Workshop de Dança Oriental estilo do Cairo - “NEW CRAZY TABLA SOLO“- Técnica, interpretação e linguagem moderna nascida na vida nocturna do Cairo, mescla do mais puro e tradicional “baladi” com uma abordagem moderna da dança apta a comunicar com todos os tipos de público: estrangeiro, egípcio e árabe.
Nova forma de escutar, dançar e interpretar a percussão egípcia.
Nova abordagem ao trabalho de danca com percussao unindo o tradicional estilo egipcio a uma criatividade individual e pioneira. Revolucao na forma como se danca o ritmo e a percussao com coreografia bombastica acompanhada com DVD da coreografia ensinada!
Preparação para o “NEW CRAZY TABLA SOLO”

Das 15.30h às 18.30h - Bloco I do Workshop de Saiidi moderno- Folclore do Alto Egipto
Técnica, ritmo e estilo/postura/atitude próprias de Saiidi.
Coordenação com bastão, movimentos “saiidi” e “tahtib” e descoberta de uma feminilidade e sensibilidade árabes.
Uniao do vocabulario mais genuino de Saiidi a uma musica, combinacoes e interpretacao modernas. Coreografia para palco!


Domingo, dia 20 de Setembro:
Das 10.30h às 13.30h - Coreografia completa utilizando a técnica e ensinamentos transmitidos no 1º bloco do Workshop.
Das 15.30h às 18.30h - Coreografia completa utilizando a técnica e ensinamentos transmitidos no 1º bloco do Workshop.


BAZAR ORIENTAL:
Exposição e venda de artigos relativos à Dança Oriental em local adjacente à sala onde decorrem os workshops.
Os últimos cds do Egipto, novos trajes e lenços de alta qualidade para bailarinas, sagats, véus , dvds de Dança Oriental e muito mais... aberto das 11.00h às 17.30h a participantes dos workshops e não participantes.

***
Preços:


*** 1 Workshop(6 horas de formação divididas entre Sábado e Domingo)
Inscrição promocional até dia 20 de Julho (65 euros)
Inscrição promocional até dia 20 de Agosto (75 euros)
Inscrição “standard” desde dia 21 de Agosto até à data do Workshop (90 euros)

*** 2 Workshops (12 horas de formação)
Inscrição promocional até dia 20 de Julho (110 euros)
Inscrição promocional até dia 20 de Agosto (130 euros)
Inscrição “standard” desde dia 21 de Agosto até à data dos Workshops (150 euros)


***
Formas de pagamento:

Para inscrever-se e garantir a sua participação no Curso ou nalgum dos blocos de formação, terá de efectuar o pagamento do mesmo através de transferência multibanco para a conta com o NIB: 0007 0075 000 1125 000536
ou envio de cheque ( no caso de preferir enviar-nos o cheque por correio, peça-nos a morada da Dança Mágica )
Após ter efectuado a transferência ou enviado o pagamento, terá de informa-nos a data em que fez a transferência e o nome em que fica efectuada a inscrição através dos seguintes contactos:
joanabellydance@sapo.pt / dancemagica@gmail.com
TM: 00351 - 96 642 7997 (Portugal) /


NOTA: Possibilidade de alojamento na Pousada da Juventude do local do evento (IPJ do Parque Das Nações ).

Organização:
Joana Saahirah e Dança Mágica
http://www.joanabellydance.com/
FaceBook (Joana Saahirah)

Cairo, dia 30 de Junho, 2009

“Ternura...”

*** Entre a correria dos dias imparáveis de compromissos e objectivos, a loucura da vida do lado de cá –e do lado de lá, o vosso...presumo... – tendo a esquecer o valor da ternura. Por vezes, a ternura e gestos de amor surgem de onde menos se espera.

*** Hoje de manhã, enquanto observava as minhas duas meninas (gatinhas Sweetie e Kenzi), não pude deixar de notar como são lindas e, cada uma à sua maneira, ternurentas e doces.

*** Sweetie: Mais conhecida pelos que com ela alguma vez privaram como “a Rainha” ou “a Princesa”. Apesar de ser muito dona do seu nariz (cor-de-rosa, doce, doce, doce...), tem acessos de ternura agudos, correndo para a minha cama e cobrindo-me de beijos, colando-se à minha cara de tal forma que posso
sentir-lhe o hálito quente de amêndoas doces.
Vive tórridos e, não obstante, românticos e líricos casos de amor com pássaros que vêm cantar para ela na varanda da minha casa.
Fala comigo pedindo mimos e cuida da nova “irmã” adoptada, aceitando enfadonhas brincadeiras de “miúdos” que a mais nova lhe impõe e partilhando a minha cama com ela (antigo domínio da Sweetie) criando autênticos duetos de ronrronice pegada que fazem o meu colchão vibrar.
O olhar mais doce que já vi na minha vida!

*** Kenzi ( “meu tesouro”, em árabe): A bebé da casa rapidamente se habituou às minhas beijoquices e abraços constantes.
Come e bebe deitada no chão, como um imperador romano prostrado na sua “chaise longue” enquanto um servo lhe deixa caír uvas frescas na boca.
Já pede mimos e dorme com a barriga virada para cima, coxas abertas e relaxadas (todos os meus gatos dormem assim...será que esta tendência vem de “moi”?!)...mais doce, difícil!

Campeã da Ronrronice. Assim que eu me aproximo dela, desata a ronrronar (é assim que isto se escreve?!) de uma forma tal que eu temo que de desintegre devido às fortes vibrações que dela emanam.
Dá-me patadinhas na cara quando a pego ao colo e beijos nas mãos sempre que a acaricio. Senta-se em frente à Sweetie e fixa-se nela, satisfeita apenas com a sua presença.

*** As lições de ternura e amor chegam-nos de onde menos as esperamos. É preciso estar-se atento.
Cairo, dia 29 de Junho, 2009

“Quando a Arte e o Comércio desmedido andam de mãos dadas...
Festival Ahlan Wa Sahlan e Dina no seu pior


*** Ainda estou em choque com a noite de ontem.
Assisti a mais uma gala do Festival “Ahlan Wa Sahlan” no hotel Mena House e, apesar de reconhecer o mérito da senhora Raqia Hassan que teve a coragem, a força e a inteligência para erguer um império e espalhar a Dança Oriental pelo mundo, não posso deixar de me entristecer com o caminho exageradamente mercantilista que o evento está a tomar.

*** As actuações e até muitos dos workshops ministrados no Festival são pagos à organização do mesmo que, em troca de dinheiro e serviços gratuitos, promove “professores” e “bailarinos” que de profissionais têm pouco. Marketing que se vende bem caro e ausência de critério na escolha de quem ensina ou se apresenta em espectáculo num dos Festivais Mundiais do Cairo!
Em troca de um palco com o nome “Ahlan Wa Sahlan Festival” no fundo do mesmo, muito dinheiro rola por baixo da ponte e assim se destrói muito do trabalho já feito pela própria Raqia Hassan que tanto contribuíu para dignificar a Dança Oriental no mundo. Existem contradições que não entendo.

*** Espectáculo da Dina e de um dos seus clones (Dalila):
Nem sequer me vou alongar neste comentário porque a minha opinião é tão negra que talvez manche toda esta página que agora escrevo.
Primeiro “espectáculo” da noite (Gala de Professores e Alunos, não entendi bem de quem...) com Dalila. Autêntico clone de Dina totalmente desprovido de técnica, originalidade, talento ou alma. Sem mais comentários.

Dina!
Mais uma vez, sem grandes comentários. Como resumir o que penso?!
Dina caminhando no palco, mãos na boca, expressões pseudo-sexys e muito, muito pouca dança. Plus, nenhum sentimento.

*** Assisti à Gala na esperança de ver e gravar as actuações de dois amigos meus mas, devido à aparição repentina de Dina, estes não actuaram.

*** Noite muito confusa (deixou-me atordoada) e triste para mim.
Onde está a ARTE? Para onde caminha a Dança Oriental se o maior Festival Mundial de Dança Oriental do Cairo se digna a apresentar uma gala assim, funcionando mais como uma máquina de marketing do que como um evento de divulgação e evolução desta arte que tanto amamos?!


Cairo, dia 24 de Junho, 2009

“As várias noites do Cairo – Nilo e Show de Derviches seguido do polémico “Moulid” de Sayeda Zeinab...”

*** Continuo nas minhas peregrinações nocturnas pelo Cairo, tirando o máximo proveito das minhas raras noites livres...jantares com amigos e outros artistas na baixa da cidade e em casa de egípcios generosos que me empanturram com os meus pratos preferidos, passeios no Nilo em barcos iluminados de forma “kitch” e com musiquinhas irritantes dos tops populares do Egipto, concertos e uma visita ao famoso “Moulid” de Sayeda Zeinab, numa das zonas mais fascinantes e perigosas do Cairo (Cidade dos Mortos).

*** Como um pássaro – livre, sempre livre! – movo-me de um extremo ao outro, de um universo ao seu oposto e sempre com o mesmo respeito e interesse porque a riqueza do que se observa está, em grande parte, da capacidade do olho que se lhe dirige.

*** Noite 1 : Jantar com amigos e passeio no Nilo com direito a bebidas alcoólicas das quais não usufruí, uma vez mais...o apelo do proíbido é irresistível. Apesar de ser proíbido o consumo de bebidas alcoólicas no Cairo, existem vários estabelcimentos com “licenças” (leia-se “subornos chorudos”) para vender o bem proíbido. O egípcio comum evade-se com a música, o sexo ilícito e o haxixe. O estrangeiro ou o egípcio “estrangeirado” procura as suas crevejas e o seu bom vinho e sempre o encontra.
Os meus amigos levam cervejas para o barquinho que nos leva por um passeio “naif” no Nilo onde, depois das 1.30h da manhã, estes barcos não podem circular.
Bancos de madeira cobertos de tecidos berrantes e sujos e um rádio de carro fazendo as vezes de uma aparelhagem de som que projecta músicas tontas e anima o pessoal, “baladi style”!
Depois de dançar e rir muito em pleno Nilo – sendo olhados de lado por egípcios que passam noutros barcos e que vêm a dança em locais públicos como algo de mau tom e próprio de bárbaros sem educação.

Procuramos um “night-club” na baixa da cidade que nos mostre uma paleta suficientemente interessante de personagens que nos encha a imaginação nos próximos dez anos. Entramos em dois locais nocturnos tão mauzinhos, tão mauzinhos que nem a bailarina de peruca cor-de-laranja e tacões “Drag Queen Tânia Vanessa” nos convence a ficar, suportando o mofo, mau cheiro, chá amargo e clientela para lá de rasca que povoa aqueles espaços. Mais vale ver um filme do Pedro Almodóvar (e poupamo-nos o embaraço de ter de partilhar o night-club com os habituais exércitos de baratas que dão côr à casa).

Detalhe comovente e revoltante da noite: Enquanto nos dirigíamos para um restaurante na baixa da cidade, fui abordada por uma menina que devia rondar os 7 anos de idade. Ela pediu-me dinheiro e ofereceu-me beijos e bajulações, até que eu me ajoelhei e calmamente lhe perguntei, olhos nos olhos:
- Não devias estar em casa com os teus pais?! O que faz uma menina tão pequena a esta hora na rua?
- Tenho de levar 35 libras ao senhor senão ele fica zangado. – Respondeu ela sem hesitar e com um óbvio terror nas faces queimadas pelas ruas cruas do Cairo.
- Que senhor? O teu pai? A quem tens de levar dinheiro?! – Lancei eu, antes que tivesse tempo de pensar e recear responder ao meu súbito inquérito.
- O senhor. Ele zanga-se se eu não levar o dinheiro. – continuou ela como que em piloto automático e fixando o chão.
A esta altura, um dos meus amigos perguntou-lhe se podia tirar uma fotografia minha com ela mas a menina gritou com terror e disse, categoricamente, NÃO!
- Porquê?! – Perguntei eu.
-Vocês vendem estas fotografias aos jornais e depois o senhor zanga-se comigo.” Persistiu ela, decidida a não se deixar fotografar e, imeditamente, mudando de ideias quando o meu amigo lhe mostrou uma nota de 5 libras egípcias e lhe assegurou que as fotos não eram para jornais.

O que mais me impressionou foi o medo que esta criança alimentava em relação àquele que é o seu proxeneta (existem máfias de tráfico e exploração de crianças por todo o Cairo), a sua consciência do que é certo e errado (tendo noção de que a imprensa internacional condena aquilo que lhe estão a fazer e temendo represálias por se expôr a uma câmara) e a forma como ela me propôs em casamento quando eu a abracei e lhe fiz uma festa na cabeça.

- Caso contigo. Leva-me para tua casa. – Disse-me ela, embevecida como um cordeiro bebé depois de a ter acariciado.
- Casas-te comigo?! Mas tu és menina e eu sou menina! Como vamos casar?!” – Respondi eu, indo ao encontro do tom e de cócoras, de forma a me sentisse em sintonia com o seu mundo.
- Não importa. Eu não preciso de ser teu marido. Posso dormir aos pés da tua cama! Leva-me contigo...– concluíu ela, nitidamente desejosa de ser levada dali para fora para uma realidade longe daquela que conhece.

Dei-lhe rebuçados e algumas moedas, alguns beijos – que tiveram o efeito que os rebuçados e o dinheiro não tiveram – e despedi-me dela com um aperto no coração. Sei que alimentei um pouco mais um círculo vicioso que contribui para a exploração destas crianças mas também sei que será agredida, caso regresse a casa sem dinheiro. O “senhor”, seja lá quem for o atrasado mental, não perdoará que ela regresse a casa de mãos vazias nem sonha que, por momentos, aquela menina a quem trata como uma máquina sabe Deus de quê, se sentiu humana porque houve alguém que ousou dar-lhe um abraço e passar-lhe a mão pela cabeça.


Terminamos a noite dançando em casa do Mohamed. O porteiro tem uma noite em cheio com o pessoal que chega ao prédio e com a música que sai do apartamento do meu amigo.

*** Noite 2 : Show de Derviches e Moulid Sayeda Zeinab

*** Pergunto-me como é possível que eu nunca tenha visto este espectáculo?!
Há vários anos a esta parte, o Ministério da Cultura (naquilo que foi um ataque súbito de loucura abençoada) subsidiou e promoveu um espectáculo de Derviches e música sufi egípcia no coração do Hussein (mercado de Khan El Khalili) e no seio quente de um palácio para lá de belo chamado “El Khoury”.
Poucas coisas me tiram o fôlego e já vi tanta porcaria na área da dança e música orientais que penso, à partida, morrer de tédio sempre que vou ver um espectáculo comercial mas esta foi uma excepção total à geral onda de facilitismo e pobreza artísticas do meio em que me movo.

Música sufi do melhor com músicos fantásticos e individualmente talentosos e carismáticos.
“Tannoura” ou dança dos derviches de uma tremenda beleza e carga espiritual, contrariando a minha opinião em relação a todos os espectáculos comerciais do mesmo género que tenho visto no meio ou depois dos meus próprios espectáculos ou no trabalho de outras bailarinas.
Retirada do seu contexto espiritual, a “tannoura” (que significa “saia” ) perde todo o seu significado e transforma-se num simples exercício visual durante o qual um homem – geralmente – gira sobre si mesmo sem parar exibindo uma ou várias saias multicolores e criando efeitos com as mesmas. Qual o interesse? Qual o significado?! Sempre me escapou...excepto quando vi este espectáculo no palácio já de si mágico e me apercebi que o giro sufi pode ser usado como uma forma de meditação – libertação do ego-mente - e símbolo do movimento perpétuo da Terra e do próprio sistema solar.
Lindo, luminoso e extremamente bem coordenado.
Existem duas ocasiões opostas durante as quais me poderão ver de boca aberta (sem que eu mesma me dê conta disso!): quando vejo algo absurdo de tão mau que é ou quando me deixo deslumbrar por algo maravilhoso (como acontece às crianças, habituadas a perder o pio face a emoções fortes).
Permaneci boquiaberta pelas melhores razões possíveis.

Todas as 4ª feiras e Sábados, pelos 20.00h no Palácio “El Khoury”, Hussein.
A não perder!

*** “Moulid” de Sayeda Zeinab

Entrando numa das zonhas mais pobres e perigosas do Cairo – cidade dos Mortos- não pude deixar de notar como, cada vez mais, este povo necessita algo a que se agarrar e em que ter fé para fazer face às incertezas do Futuro e terríveis dificuldades do Presente.
A religião oficial – muçulmana – e prevalecente sempre esteve contra outras manifestações religiosas ou espirituais mas o Egipto gaba-se de ser uma nação multi-racial-religiosa-cultural e, devido a isso e ao desejo do povo que não permite que apaguem certas tradições milenares, os “Mawalid” (plural de “Moulid” continuam a existir, acesos no coração dos crentes no mundo do lado de lá...).

Os “Mawalid” são aniversários de figuras centrais da religião muçulmana mas a forma tendencialmente profana como são festejados dá-lhes uma conotação negativa, sendo considerados pela maioria dos egípcios como manifestações populares dos mais pobres e ignorantes.
Existem vários “Mawalid” mas um dos mais conhecidos do Cairo é este, onde venho parar pela terceira vez, dedicado a Sayeda Zeinab (filha do profeta Mohamed) e celebra-se com música de transe e dança repetitiva (balançando o corpo inerte de um lado para o outro com a cabeça pendurada e já perdida como uma pêndulo que perdeu o norte e o sul).

Existe nestas celebrações uma componente sufi bastante forte e é ela que justifica a utilização de música e dança catárticas como forma de comunicação com Deus.
A religião muçulmana praticada pela maioria dos crentes opõe-se a qualquer actividade que permita ao ser humano evadir-se e perder-se da sua própria mente (como a música, dança, bebidas alcoólicas e drogas, paixões de todos os géneros, amor pelo sexo oposto). As facções sufis que saem da ordem geral desta religião permitem e encorajam o uso destas artes – música e dança – como forma de ligação ao Divino e, por isso, são olhadas de lado pelas autoridades religiosas e poder instituído.

Detalhe escabroso: Fui apedrejada duas vezes nas costas porque trazia vestida uma blusa que mostrava os ombros. Resultado da ignorância, pobreza material e de espírito e repressão.

Detalhe apetitoso: Uma personagem que eu reencontrei, pela terceira vez, neste vasto mundo do “Moulid” de Sayeda Zeinab. Um homem com uma cobra de estimação a quem dá de beber como se fosse uma mãe amamentando o seu filho, introduzindo a cobra na boca e assustando os transeuntes mais vulneráveis.

Detalhe amoroso: Crianças que me “descobriram” e a mim se colaram, abraçando-me, beijando-me, observando-me como se eu fosse uma relíquia e com quem tirei fotografias e falei sobre assuntos do “Arco da Velha”. Uma das meninas foi a casa buscar um frasco de perfume para me oferecer (será que estava tão pestilenta que a criança não pôde conter o impulso de me oferecer um perfume?!) e todas ficaram histéricas quando eu me atrevi a fazer um movimento mínima de ancas ao som da música que vinha do interior de uma das casas com janelas escancaradas. Para elas, esta foi noite de Natal (embora, como muçulmanas, elas nunca o festejem).

Detalhe informativo: Dita as regras de cortesia dos “Mawalid” que os transeuntes deverão ser convidados a participar nos rituais de transe e aos mesmos devem ser oferecidas bebidas – chá, água, refrescos – e comida, se disponível.

*** Noite intensa e cheia de observações que usarei directamente no meu trabalho. Toda a movimentação ligada aos rituais de transe se prende com essa necessidade básica de nos evadirmos de nós mesmos e da nossa realidade material, viajando para outras dimensões. Já está incorporado no meu reportório de dança...e assim se evolui e aprende...





Cairo, dia 22 de Junho, 2009

“Il Zaar – “rave parties” caseiras para libertar demónios e outras maleitas...”

*** Hoje acordei pesada e molhada do calor que me derreteu durante a noite para assistir a um espectáculo único: as minhas duas garotas (gatinhas, Sweetie e Kenzi) num estado de rara cumplicidade e entendimento, brincando/torturando uma barata tão grande que mais parecia um pequeno pónei.

*** Aproveitando um período aborrecido de mais burocracia (devido à minha abençoada transferência para o “Nile Maxim” onde partilharei o espaço com Asmahan e Randa Kamel), tento aprofundar os meus conhecimentos de dança e cultura, ler mais, coreografar para os eventos de Setembro ( e o DVD que acompanhará os mesmos!), ensinar o melhor possível nos cursos de Verão que estou a ministrar aqui no Cairo e também rever amigos, observar e assimilar tanta cultura e informação disponíveis nesta cidade louca onde o vulgar se confunde com o espectacular e nada é aborrecido ou previsível...

*** Reúno-me, depois de meses sem o ver, com o meu amigo Mohamed (el Sayed) com quem estudei, lado a lado, apredendo com o nosso querido primeiro mestre, Shokry Mohamed (infelizmente, já falecido).
Dançamos juntos, conversamos na sua casa rústica na famosa rua de Mohamed Ali (outrora conhecida pelas várias agências de artistas e, actualmente, reduzida a pobres lojas de instrumentos musicais e casas das últimas “awalim”), trocamos impressões e discordamos sempre com o respeito e vontade de aprender com que nos conhecemos um ao outro, numa altura em que ninguém poderia ter previsto as voltas fantásticas que a vida deu!

*** Enquanto estou envolta numa rotina constante de espectáculos, raramente tenho tempo ou energia para me lançar em domínios desconhecidos e sair à noite. Aproveitando este irritante – mas útil! – interregno nos meus espectáculos, agradeço ao Mohamed algumas das experiências mais fantásticas que se podem ter no Cairo e com ele entro em mundos que, mais tarde, desejo mostrar às alunas que venham de Portugal numa viagem ao Egipto a organizar para o ano que vem!
Ele relembra-me que o Cairo não é composto apenas de hotéis de 5 estrelas e escritórios. Existe aquilo que a classe alta considera detestável e que poderemos chamar “sub-mundo baladi” onde as surpresas e beleza insuspeita estão sempre ao virar da esquina.

*** “Il zaar” – Rave Parties caseiras para libertar demónios e frustrações várias...


*** O Mohamed levou-me até uma povoação longínqua dentro do Cairo (esqueço-me de quão grande é esta cidade!). Povoações como esta não figuram nos guias de viagens (nem sequer no “Lonely Planet”!) e suspeito que ninguém – excepto loucos como eu – as buscam. Blocos de cimento salpicados de lojas ruidosas e iluminadas a mil cores, gente e mais gente a perder de vista e umas esquinas rafeiras por onde passamos para encontrar, como no fundo de um longo túnel, uma casa perfeitamente vulgar onde se pratica – há mais de 90 anos – um ritual semanal de “Zaar” presidido pela “sheikha” e frequentado por mulheres pobres sem dinheiro para divórcios, férias num SPA ou consultas de psiquiatras.

*** As sessões de Zaar remontam a um passado longínquo e podem encontrar-se, sob outras denominações, em várias culturas (africana, brasileira, marroquina, norte-americana, etc) onde os demónios/energias negativas de cada indivíduo são persuadidos a enfrentar uma música e dança tão catárticas que nem o mais persistente “encosto” consegue aplacar a sua própria extinção.
Independentemente daquilo que se possa chamar a estes encontros (acompanhados por músicos com um reportório específico para a ocasião), o que entendi e senti na pele foi o seguinte:

*** O ser humano precisa de escapes para libertar as suas frustrações, emoções reprimidas, energias-pensamentos- cargas negativas e a música-dança servem de veículo para tal libertação. Até aqui, nada de novo. Eu própria uso a dança e a música – o meu trabalho, no fundo – como catárse.
No entanto, o Zaar possui uma componente espírita muito forte, invocando almas do Bem e do Mal, manejando forças ambíguas que vivem, paralelamente, no Universo e dentro de nós mesmos.

*** A casa está pesada de tantos espíritos que ali repousam e assistem às danças espontâneas das mulheres que chegam e partem sem uma palavra que lhes saia da boca mas com mundos a preto e branco saindo-lhe dos corpos exaustos de uma vida que lhes pesa.
Existem alguns músicos – adufes, tabla e flauta nay – e uma cantora castiça que também toca adufe com as suas mãos rechonchudas, fortalezas calejadas de trabalho e dores constantes.

*** Eu sento-me com os meus amigos e sou persuadida a participar no ritual depois de já ter observado as danças de duas vizinhas que chegaram com os seus filhos ainda bebés a quem amamentam entre uma sessão de dança- espanta espíritos e a outra. Um mundo não incomoda o outro, antes se entrelaçam e completam: o visível e o invisível. O bem e mal. Todos Um, apenas faces distintas da mesma moeda...

*** Cobrem a face com um véu negro que as protege da luz e do olhar dos outros. Cerram os olhos e mergulham nesse poço sem fundo que é a sua alma, chegando onde a mente não lhes permite chegar, viajando através da música e do movimento para outras dimensões onde os que já se foram cumprimentam os que ainda cá estão e lhes limpam os mapas turvos do coração que já viveu e sofreu.

*** Cada mulher tem o seu estilo de movimento, a sua cadência e energia próprias. Frustrações e sonhos são dançados ao som de instrumentos e canções criadas pelo Diabo para servir a Deus ou por Deus para servir o Diabo. O objectivo destes ritmos parece-me óbvio e com muita naturalidade – a naturalidade da bruza que há em mim – me lanço a esse espaço comum de voos e escapes.
Danço ao som da percussão que me leva onde já vou, normalmente, com a minha arte. É esse o privilégio e o perigo de se ser artista: estar sempre em contacto com esse outro lado do Universo, essa dimensão invisível onde os espíritos nos suspiram ao ouvido e lhes podemos tocar com as mãos nuas de preconceitos e medo.

***O que mais me impressionou?!
A forma como as energias de alta e baixa vibração se misturam, pacificamente, num contexto onde ninguém julga ninguém e o conceito de realidade se perde.
Ter visto – através dos corpos em movimento – que o Bem e o Mal são uma e a mesma coisa, apenas degraus diferentes da escalada que todos percorremos em direcção à PAZ total (ou Deus, como se lhe queira chamar).

Saturday, June 27, 2009

Cairo, dia 16 de Junho, 2009


“Festival de Nile Group e Aula com Mahmoud Reda, “one more time”...”

Mahmoud Reda sendo homenageado pelos 50 anos da existencia da "Reda Troupe"
*** A perspectiva de quem conhece um objecto desde o seu interior é sempre diferente da perspectiva obtida à superfície do mesmo. A ponta to iceberg não nos informa da verdadeira dimensão de tudo o que dele está imerso por água.
Sem buscar saber tanto do que sei, acabo por ver e ouvir mais do que gostaria e, assim, compreender a realidade que me rodeia de forma multi-dimensional.
Os podres do meio artístico da Dança Oriental não são novidade para quem lê este “Diário do Egipto”, bem como as maravilhas que o compõem.

*** Não sou adepta de grandes críticas negativas por várias razões. Dizer que não gostei de algo não constrói absolutamente nada e criticar negativamente colegas – artistas ou não - que trabalham no mesmo círculo fechado que eu soa-me bastante mal.
Prefiro apenas referir os pontos positivos quando se trata de criticar bailarinas do meu mercado, por isso, aqui vamos...quando não enfatizar alguém ou o seu trabalho, significa – normalmente – que não me agradou por aí além.

*** Gala de abertura do “Nile Festival”:

Bailarinas: Nancy (egípcia), Nour (russa) e Camelia (egípcia);
Não cheguei a tempo de ver a Nancy que ficou, depois da sua actuação, sentada ao meu lado com um ar de cachorrinho abandonado. Muito simpática e educada mas deslocada do ambiente do Festival.


Nour: bailarina com quase vinte anos de trabalho no Egipto sendo que já não actua regularmente no Cairo há, pelo menos, tres anos. É uma bailarina muito respeitada e inteligente, super séria no que faz e com um amor visível à dança. Respeita-se a si própria e áquilo que faz e isso nota-se. Apenas um “senão” (não consigo resistir...tenho de dizer o que penso!):
Respeitar a Dança Oriental não quer dizer que temos de a ver como uma oportunidade de entrar para o Convento das Irmãs Franciscanas. Quero dizer com isto que lhe falta, a meu ver, a garra e sensualidade que são próprias desta arte. Demasiado pudor, certinha até mais não, mecânica e correcta em todos os movimentos. Nada a ver com o “feeling” verdadeiro, meio louco e visceral que eu gosto de ver numa bailarina. Em defesa da Nour, devo acrescentar que muito desse ar de monja deverá vir da sua educação e personalidade e ela apenas se limita a ser si própria (isso é positivo!) mas, pessoalmente, prefiro criatividade e talento ao certinho e ao púdico.




NOTA: O.k, já entrei em total contradição quando referi que não criticaria negativamente as minhas colegas. Não pude resistir dizer exactamente aquilo que sinto. Foge-me sempre a boca para a verdade...

Camelia :
Ponto polémico da noite – como penso que foi intenção da bailarina criar – porque toda a gente com quem falei me pareceu ter detestado o espectáculo da Camelia e eu gostei. Não me deslumbrei, não fiquei sem ar nem me emocionei mas vi muitíssimos pontos de interesse e usufruí de um espectáculo que me deixou interessada e curiosa pelo que havia de vir do início ao fim. Eis o que me encantou:

Escolha das músicas: Excelente. Bom gosto, originalidade, oposto de todo o facilitismo das bailarinas que escolhem músicas que presumem agradar ao público mas que não lhes agradam a elas e às suas almas. Adorei todas as músicas interpretadas e senti que havia um claro conhecimento da matéria e bom gosto da parte de quem quer que seja que compôs o programa do espectáculo.




Personalidade: Total. A Camelia, goste-se ou não, é ela mesma e não está minimamente interessada no que os outros digam. Por vezes é horrível, vulgar, intensa ou simplesmente despropositada mas sempre ELA MESMA e isso requere coragem e carácter. Para mim, este é o grande ponto forte da Camelia e muito se tem a aprender com a sua ousadia.
Adereços e originalidade nos conceitos de cada dança:
“Shamadan” – candelabro – com “sagats”, pulseiras indianas nos tornozelos com as quais ela criou um efeito percussivo em resposta à “tabla”, “assaya” – bastão – e muita loucura nos passos e movimentos que ela deve ter aprendido numa escola em Plutão (estranho, estranho, estranho...). Houve uma óbvia preocupação por apresentar algo de original, novo e controverso.






Existem várias formas de deixar uma impressão na mente do público... A Dina tem usado escândalos sexuais, roupas totalmente reveladoras e movimentos que não deixam espaço à imaginação para se auto-promover durante toda a sua já longa carreira e a Camélia também parece ter essa noção exacta de “marketing” que se baseia na célebre frase “falem mal ou bem de mim, o importante é que falem!”






. Nada do que vi em palco de estranho foi lá posto ao acaso, disso tenho a certeza...houve quem detestasse, quem abominasse os espasmos, “close-ups” de traseiro e gestos baratuxos e tal mas, o que interessa é que, no fim, toda a gente ficou a falar nela...assim se criam nomes neste meio artístico e a Camelia parece sabê-lo muito bem.




· O que não me agradou tanto (a Nour apanhou, a Camelia também tem de apanhar... L ):
Excesso. Excesso de esforço. Excesso de tentar chocar e inovar dando origem a um estilo que não é oriental nem é estilo nenhum. Tentativa de incluir estilos de dança que ela não domina e que resultam frouxos, amadores e sem beleza estética.
Excesso de insegurança e de ânsia de provar algo diante do público resultando em rasgos de agressividade e ataques nervosos que saiam do contexto, do ritmo, da música, daquilo que ela estava a sentir.
Excesso de vulgaridade – bem diferente de sensualidade - em muitos dos movimentos que fez questão de frisar (traseiro, traseiro, traseiro...virado, espetado, apontado, freneticamente abanado na cara do público).




Sei, por experiência própria, que a necessidade de provar algo ao público e a insegurança criam autênticos desastres. Correndo o risco de me parecer com uma pseudo-analista de quinta categoria, ouso supor que os momentos e aspectos que não me agradaram do espetáculo da Camelia têm a ver com uma enorme insegurança e medo de não ser “suficientemente especial”.
Consigo sentir quem está do lado de lá, em cima do palco, nas luzes da ribalta onde todos nos julgam e pensam saber fazer melhor... (é fácil criticar quando se está sentado a olhar).
Apesar de tudo o que lhe apontaram de negativo – incluindo eu – a Camelia foi a única bailarina que, em muito tempo, me conseguiu despertar o interesse.

Companhia:



O meu querido Mahmoud Reda com quem, mais uma vez, me ri às gargalhadas durante a noite inteira e a quem foi oferecida uma mais que merecida homenagem por ter sido o 50º aniversário da “Reda Troupe” da qual ele é fundador e criador artístico.
Agrada-me, acima de tudo, o amigo e não apenas o artista. Não consegui conter as lágrimas quando o chamaram ao palco e falaram sobre ele, o seu fantástico contributo e o seu bom coração (tradução: “Dei barraca da grossa!”).

Aula com o Mahmoud Reda :



Por mais que conheça o seu estilo e coreografias, nunca deixo de sentir um imenso prazer ao ajudar nestes workshops onde eu aprendo mais do que ensino.
Mais uma vez, muito riso e “private jokes” (o riso é um denominador comum da nossa relação...haverá melhor sinal que esse?!), dança e partilha. O grupo de alunas era maravilhoso e simpático, extremamente concentrado e interessado em aprender (assim dá gosto ensinar!!!).
Saí da aula cheia. Cheia de novas emoções e ensinamentos, cheia de alegria pela oportunidade de aprender com o meu amigo querido e cheia de gratidão por estar aqui, fazendo o que faço e sendo quem sou.
Cairo, dia 13 de Junho, 2009

“Aniversário a actuar e entre amigos- poderia ser melhor?!”

*** O que houve de especial neste dia de aniversário?

Visita da Nagle, senhora egípcia que faz todo o tipo de biscates para ganhar a vida e sustentar uma casa com dois filhos e um marido encamado. Contrariamente ao que é costume ver-se nas sedentárias mulheres egípcias, a Nagle é activa, lutadora e cheia de energia para trabalhar talvez porque precise tanto e também por natureza. Peca por querer fazer mais do que pode e sabe mas compensa pela força de vontade e energia para arregaçar as mangas e pôr mãos à obra.
Desde limpar a casa, a cozinhar iguarias egípcias, cozer, bordar e tricotar, fazer de figurante em séries de televisão, fazer maquilhagens que ela julga serem dignas de Hollywood mas que eu, na minha ignorância, mais vejo aptas para uma “Noite das Bruxas”, trabalhar como minha assistente quando tenho casamentos ou festas privadas (olha mais do que faz mas é um apoio!), fazer manicures e pedicures terríveis (caí na esparrela uma vez), depilações tradicionais egípcias com a “halawa” (feita com mel e limão e semelhança às ceras depilatórias) e massagens improvisadas – uff!!! – a Nagle é um autêntico Da Vinci do brica-a-braque, uma mulher com os valores da Renascença e uma genica invejável.
Visitou-me no meu dia de aniversário para me oferecer uma “djellaba” para os meus espectáculos. No meio de tanta pobreza – que ela combate com trabalho incessante – foi capaz de se preocupar em desencantar uma “djellaba” para os meus espectáculos.

Fui invadida por mensagens, telefonemas e emails de amigos de todo o mundo – literalmente – desejando-me um FELIZ ANIVERSÁRIO.
Nada me deixou mais feliz do que isto.

Manhã na piscina do ginásio onde vou treinar...sol, um bom livro e muita paz para começar o meu dia de anos.


Espectáculo em festa privada com gente eficiente, divertida e muito “boa onda”...não dancei pela arte mas pelo entretenimento. Quero dizer com isto que existem espectáculos em que o público ou a natureza do palco e evento em si pedem uma “entertainer” e não tanto uma artista. O público está animado, vem dançando pela noite fora e bebendo uns copitos. Quando eu chego, o que eles querem é pular, gritar e dançar sendo animados por mim. Nada de sentar-se e assistir a uma sentida canção de Om Kolthoum (isso é para outras ocasiões).
Confesso que me divirto mas, como artista, me sinto frustrada. O ideal é poder combinar a arte com um pouco de “regabofe”...não gosto de sentir que qualquer bom “entertainer” poderia ter feito aquele trabalho. Ser-se único passa por fazermos algo que mais ninguém poderia ter feito com a mesma qualidade e alma. Quando isso falta, eu sinto-me vulgar e facilmente substituível. No entanto, consegui estar “no momento” e celebrar com o público esta noite que era mais minha que deles!

5. Depois do espectáculo, corri para os braços de amigos que fizeram questão de organizar um jantar de aniversário e esperar por mim, apesar de eu só ter podido aparecer à 1.30h da manhã... L O carinho e presença daqueles que nos querem bem é a base de toda o sucesso e felicidade. Estou grata por isso e por tudo o resto que não posso descrever.

Cairo, dia 12 de Junho, 2009


“Campanha de luta contra o assédio sexual no Cairo”

*** É facto conhecido que o famoso pacifista Mahatma Ghandi não participava em campanhas contra a guerra. Fazendo justiça à inteligência e sensibilidade que lhe eram atribuídas, Ghandi proclamava que seria útil juntar-se a uma campanha pela PAZ e jamais uma campanha contra a guerra. Sei que, à primeira vista, ambas possuem a mesma base ideológica e parecem ir dar ao mesmo objectivo mas, no entanto, não podiam ser mais distintas.

*** Supondo que Ghandi aceitava – nunca o fez! – participar numa campanha contra a guerra, estaria a exacerbar, fazer crescer (como o fermento subrepticiamente inserido numa receita de um bolo já de si colossal) a energia, a atenção, o poder e a importância da GUERRA.

*** Ora se aquilo que ele desejava, mais que tudo, era a PAZ, faria sentido marchar e inflamar as multidões no sentido da PAZ e em tudo o que em prol da mesma se teria de fazer.

*** Não preciso de ser Ghandi para concordar com ele. Se este fosse vivo e estivesse de passagem pelo Cairo actual ou até mesmo, quem sabe, vivesse num apartamento perto de minha casa (porque carga de água é que o Ghandi viveria perto de minha casa?! O.k, adiante...), teria muito que se queixar e refutar.

*** Existe uma campanha criada por um grupo de jovens egípcias universitárias – idealistas e activas, o que é de admirar e apoiar numa sociedade em que ninguém parece mover-se para trocar um pneu – que visa lutar contra o assédio sexual nas ruas do Cairo. Até aqui, tudo bem. Mas existe um senão...

*** Fiquei surpreendida por saber existem tantas mulheres que sofrem horrores com este fenómeno do assédio sexual generalizado de tal forma que não existe local nem circunstância da esfera pública durante os quais estejamos livres do mesmo. Nem mesmo a segregação sexual – nas piscinas e transportes públicos, nos ginásios, mesquitas, etc – ajuda a controlar esta epidemia, especialmente por ser uma das tais tácticas “contra o assédio sexual” e não uma prática a favor do respeito pelas mulheres.

*** A intenção é boa, sim senhor. O desespero é ainda maior, sei disso por experiência própria (principalmente no Verão quando não sei se prefiro morrer rapidamente sufocada com roupa a cobrir-me ou morrer lentamente de nervos esfrangalhados devido ao assédio e ataques constantes dos homens).
Mas, quanto a mim, a batalha está perdida porque a luta está mal direccionada.
No artigo onde li acerca desta campanha, a autora apela a que as mulheres vítimas de assédio sexual denunciem a situação às autoridades e não fechem os olhos nem a boca quando alguém as assedia, apalpa, persegue ou viola.

*** Bonito. Muito bonito e com um espírito justiceiro que me traz lágrimas aos olhos mas totalmente afastado da realidade do país e daquilo que, realmente, acontece.
A questão estará em educar e civilizar mães, primeiro que tudo, para que eduquem os seus respectivos filhos com o sentido de respeito e apreciação pela Mulher. É normal verem-se mães egípcias ou árabes sem o mínimo controle sobre os filhos homens. As raparigas são criadas em gaiolas cheias de restrições mas os rapazes são os reizinhos chauvinistas lá de casa e ai da mãe que se atreva a contrariar o futuro varão do clã...deprimente!
Já assisti várias vezes a mães e pais incentivando meninos de cinco anos e até menos a mandarem piropos de mau gosto a raparigas que passam e...adivinharam!... às bailarinas.

*** “Vá lá, filho! Dá uma palmadinha no rabo da moça para toda a gente ver que já és um homenzinho!” – Diz o pai perante o sorriso embevecido da respectiva progenitora que, por sua vez, aceita que o marido mande piropos a outras mulheres e a traia constantemente com amantes que, frequentemente, se tornam segundas e terceiras mulheres (o homem árabe e egípcio vivendo sob a lei islâmica pode casar com o máximo de quatro mulheres, caso as possa financeiramente sustentar de forma equalitária).

*** Campanhas contra o assédio sexual?! Denunciar os ataques?! A quem?! Os polícias e autoridades são os que mais assediam e desrespeitam as mulheres.
Eu, que até sou boa pugilista e me levanto depressa depois de cada queda, já cheguei a andar à real batatada com homens na rua depois de estes me terem perseguido e assediado para, no final da contenda, ter tentado apelar à justiça e acção de um polícia que, aproveitando a oportunidade de ver e falar com um bifinho português, me assediou tanto ou mais do que o atacante inicial.
Episódios verídicos mas tão absurdos que até a mim, que os vivi, me custam a acreditar serem verdade.

*** Não nos calarmos sempre que alguém nos assedia?! Hmmm...que idealista...muito “Che Guevara” em tempos de guerrilha na Serra Leoa...aliciante mas...totalmente impraticável.
Se eu não me calasse sempre que sou assediada, já estava afónica. É essa a triste – e até tragico-cómica – verdade. Quantas vezes, por dia, sou assediada? Diria que, num dia normal em que apenas vou ao ginásio, um almoço com amigas e trabalho à noite...deixem-me contabilizar...devo ser assediada uma média de 35 vezes, no mínimo. Isto seria um dia calmo.(???) Quer dizer que teria de berrar, espernear e ir à esquadra mais próxima com o malandro pelos colarinhos cerca de 35 vezes num só dia? Parece-vos viável?

*** Partindo do princípio que estas mulheres activistas embarcam, de facto, no nobre propósito de dar cabo de cada um dos mal feitores, avisto apenas uma solução: cada mulher contrata um guarda-costas que envergará uma moca de Rio Maior para dar na cabeça de cada um dos ofensores e um saquinho de pedras aguçadas para mandar aos carros que persigam as vítimas indignadas. 24 horas por dia, sem descanso excepto quando se está dentro de casa e não se vai receber nenhuma visita do homem que faz a contagem da luz, do gaz, da água e afins.
*** Que vos parece? Viável?

*** Ninguém, mais do que eu, seria mais a favor de uma campanha a favor a educação dos homens e das mulheres – principais educadoras e transmissoras de valores e mentalidade – e de uma campanha de sensibilização à Mulher e à sua dignidade como ser humano mas não contem comigo para esta campanha bem intencionada contra o assédio.

***Valorizar e dar atenção ao lixo nunca fez com que este desaparecesse.
Cairo, dia 10 de Junho, 2009

“Dia de Portugal no Cairo – tarde com o meu querido amigo Mahmoud Reda”

Tenho descoberto imensas coisas nestes últimos anos e, principalmente, desde que deixei Portugal e me lancei nesta monumental empresa de viver e construir uma carreira no Egipto!
Aprendi que a VERDADE não é uma só e possui várias faces. Aprendi que somos imperfeitos e que as falhas são algo com o que temos de conviver, sabendo perdoar aos outros e a nós próprios. Aprendi que existem muitos caminhos para se ir dar ao mesmo local e que a Vida nem sempre recompensa os justos e os persistentes mas ninguém foge a uma missão que lhe está destinada.
Aprendi que não se pode confiar na boa fé e boas intenções de toda a gente, que a confiança e a nossa casa é uma parte íntima de quem somos que devemos partilhar apenas com quem nos quer bem de verdade.

Aprendi que são aqueles que se assumem como nossos inimigos que mais nos empurram para a frente e nos fazem crescer. Os confrontos podem ser imensamente produtivos se soubermos ser criativos e jamais perder tempo com cobiças, ódios inúteis e ressentimento.
Aprendi que existem muitos tipos de amor e um deles é reservado para os amigos da alma. É esse amor que sinto pelo meu amigo – e professor e companheiro de “galhofa” – Mahmoud Reda.
Aproveitei o dia que tinha livre para passar com o Mahmoud, uma vez que o meu trabalho constante – pelo qual agradeço a Deus! – me impede de o ver com a regularidade que eu desejaria.
Além do nosso almoço da praxe encomendado do restaurante “Flying Fish” (este nome só podia ter sido posto por egípcios!) partilhámos coreografias, planos para os próximos workshops e o filme “Singing in the Rain” com o grande Gene Kelly, um dos meus bailarinos favoritos de todos os tempos!
Sendo eu uma bailarina profissional e amante de musicais, confessar que só agora vi este clássico do início ao fim é uma vergonha mas é a verdade.
Ter visto o filme com o Mahmoud ao meu lado é uma experiência que eu sei que ficará no meu coração para sempre. Tenho consciência que o Mahmoud – como todos os que amo – não é eterno mas eu quero acreditar que é. Sei que, anos – muitos, muitos – anos mais tarde, olharei para trás e sentirei uma imensidão de saudades dele e de tantos momentos inesquecíveis que passámos juntos. Tenho consciência do privilégio que é ter passado uma tarde como esta durante a qual comentámos as nossas cenas preferidas, rimos nas mesmas partes parvas e dos mesmos “gags” cómicos e suspirámos pela beleza e talento do maravilhoso Gene Kelly!

Não sou indiferente ao facto do Mahmoud, ele próprio, ser um génio criativo com um peso incomensurável na história da Dança e do Folclore Egípcio. Sei quem ele é para o mundo e orgulho-me dele como se me orgulhasse do meu próprio pai ou avô mas aquilo que eu mais abençoo é este amigo, esta pessoa simples e generosa por trás da lenda que é e que me aceita como sou, me compreende e partilha esta paixão comum da dança e da BELEZA.

A tarde em que vi o filme “Singing in the Rain” com o meu querido Mahmoud...não a esquecerei. Quem mais poderia compreender quando eu grito ou suspiro gravemente ao ver um detalhe de um passo que o Gene Kelly acabou de executar?! Quem mais se ri comigo dos mesmos detalhes que passam despercebidos aos comuns dos mortais?!
Adoro-te, Mahmoud. E, embora não saibas português, sabes que te adoro e isso é o mais importante.




Cairo, dia 8 de Junho, 2009

“ O simples milagre da existência”


É fácil perder-se a perspectiva do que é, realmente, importante na Vida. Somos bombardeados com mensagens e “sistemas educativos” alimentados por enganos e preconceitos fielmente carregados de geração em geração des-ensinando-nos aquilo que devemos esperar da vida, o que devemos ser e ter e o que tem VALOR.
Por mais consciente que seja, também eu tenho inúmeras zonas de escuridão e confusas “verdades” adquiridas, limitações, inseguranças e medos que me foram transmitidos por pais, escola, sociedade...tento crescer, além de mim mesma ou daquilo que julgo ser. Por vezes, consigo ver mais longe. Em dias como o de HOJE.
Regressando da escola onde dou aulas – o meu querido Curso de Verão!!! – decidi caminhar até casa em vez de apanhar um táxi, apesar do calor tórrido que já faz no Cairo ( e ainda estamos no início de Julho!).
Vinha perdida nos meus pensamentos, objectivos e lista de estratégias e tarefas a seguir quando dei por mim atravessando uma estrada ladeada de árvores altas e velhas como o tempo. Entre os ramos das árvores, via-se excertos de céu como palavras soltas num poema que se entende nas entrelinhas. Uma brisa muito leve cobria as folhas e os ramos que me protegiam do sol e uma imagem de perfeita beleza inundou-me os olhos e, mais que isso, a alma! Nem sempre uma imagem trespassa os portões maciços e resistentes dos olhos que já viram demasiado...desta vez, aquilo que os meus olhos virão abriu as portas mais fechadas, as do medo e da inocência perdida e, num segundo, lágrimas leves cobriram-me a face.



Isto sucede-me, de vez em quando...quando vejo ou vivo uma experiência de beleza intensa e a emoção dessa beleza é tão grande que os rios internos do coração não se contêm e se soltam fazendo-me lembrar que, apesar de todas as preocupações, dúvidas, medos, pequenas/grandes alegrias e tristezas, o essencial da Vida está aqui, neste momento, AGORA entre mim, estas árvores e este céu em migalhas de poema.



Respirei fundo – coisa que tento fazer cada vez mais – e senti que tudo está bem e completo AGORA.As lágrimas, como o riso, saltam-me facilmente da cara, sempre. Aprecio isso em mim e espero nunca o perder.
Saber ler poemas onde o comum dos mortais apenas vê troncos de árvore e nuvens é outro dom pelo qual sou grata.
Tacinha de morangos apanhados no nosso jardim em Portugal (obrigada, Dedinha!)

Cairo, dia 6 de Junho, 2009

“Grande espectáculo no Nile Maxim – o começo de uma nova Era...”


Uma nova Era tem início...na minha Vida.
A noite passada tive um dos meus sonhos premonitórios que me anuncia mais invejas e males de olhado fortíssimos...nunca se cresce, evolui e goza de sucesso sem termos de andar de mão dada com a inveja e a cobiça. Este é o preço mínimo a pagar pelas nossas conquistas. O sonho relembrou-me dessa fria verdade que tanto me tem custado aceitar.
A VIDA pode ensinar-nos muitas coisas. Experiências das quais se retiram conclusões, erros repetidos com os mesmos resultados, ciclos que se completam e fecham diante dos nossos olhos incrédulos face ao rápido passar do tempo. É lugar comum afirmar que todos envelhecemos, mas nem todos crescemos. Há muito boa gente a quem crescem cabelos brancos mas nunca o juízo. O tempo passa pela gente comum como um vento suave que não nos toca directamente nem altera quem somos, a nossa estrutura molecular, o estado da nossa (in)consciência.
Ter vindo sozinha viver e batalhar pelos meus sonhos foi a decisão mais difícil da minha vida – até agora – mas também aquela da que mais me orgulho e a qual não trocaria por nenhum sucesso garantido nem conforto que o meu país Natal me pudesse oferecer. Senti que Portugal era demasiado pequeno – geografica e artisticamente – para tudo o que quero realizar e tinha razão. Cada vez que visito o meu país e vejoo estado em que se encontram as Artes, em geral, e a Dança Oriental – em particular – fico triste por quem lá trabalha e feliz por ter escapado à vulgarização e comercialização barata da arte que eu aprendi a amar e pela qual já tanto sofri e sorri.
Das muitas coisas que aprendi, por experiência própria, foi ter a certeza de que na vida não existem certezas (será isto uma contradição?!) e que a vida dá muitas, muitas, muitas e inesperadas voltas.
Depois de tres anos de trabalho no Cairo, incessantemente provando o meu valor próprio e gerindo sozinha orquestras, burocracia, contactos com homens da pior estirpe e espectáculos diários, vejo-me apresentando o meu primeiro espectáculo no famoso cruzeiro “Nile Maxim”, em Zamalek.
A história que me trouxe até aqui é demasiado rebuscada para relatar neste diário. Tão incrível e absurda que nem eu mesma pareço acreditar na realidade que vivi. Ver um porco a andar de bicicleta já não me surpreenderia e digo isto sem gozo nem ironia. A mais pura verdade: já nada, absolutamente nada me impressiona ou choca.
Em tres anos de espectáculos, aprendizagem do dialecto egípcio, luta diária e incessante e muitas desilusões pelo caminho, ganhei também uma preciosa capacidade de contornar obstáculos e de não me deixar tocar demasiado pelo sofrimento e pelos episódios clássicos de gente em quem confiava e que me apunhala pelas costas com o sangue frio de uma barata. Espero o melhor e o pior de todos os que rodeiam e quando os choques embatem e seria óbvio ver-me de rastos, eu reergo-me da queda sem deixar que os meus braços cheguem ao chão. Respiro fundo, perdoo no momento imediato e sigo em frente sem verter uma lágrima. Desenvolvi esta carapaça em tais proporções que já duvido se é possível voltar a sentir o gosto de uma lágrima. Será bom sinal já não conseguir chorar face às maiores tristezas e desilusões!? Hmmmm.....
“Quem diria?! Eu, actuando com a minha nova orquestra e bailarinos no famoso “Nile Maxim” e sem passar pela cama de nenhum gerente ou senhor do poder...uau!Os milagres acontecem, de facto!”
As duas bailarinas com que eu partilho o local são duas referências da cena internacional do Cairo e duas bailarinas que eu respeito por razões distintas: Randa Kamel (egípcia) e Asmahan (argentina).
Nunca penso em termos de competição mas, se o fizesse, estaria a competir com os pesos mais pesados da melhor categoria de bailarinas no Egipto ( ambas com cerca de 15 anos de avanço em relação a mim em termos de presença e experiência no mercado) e isso não me deixa ansiosa ou com receio...deixa-me excitada e com vontade de provar, mais uma vez, quem sou e como amo esta arte que me escolheu. O desafio é irresistível e não me amedronta.
Entro no cruzeiro com a minha assistente egípcia– maquilhada de forma tão exagerada que se parece com uma “drag queen” mas feliz e deslumbrada por estar ali ao redor de tantos artistas e num local de prestígio – e uma colecção de malas impressionante. Os meus trajes, adereços, maquilhagem e chá, os trajes do meus bailarinos (sim, agora tenho bailarinos egípcios no meu espectáculo!) e respectivos adereços...uff!
Entro na sala onde, tantas vezes, vim assistir aos espectáculos da Randa Kamel e da Asmahan e, de forma estranhamente familiar, sinto que este local me pertence. Piso o palco, faço um teste de som e ensaio com os meus bailarinos (sabe bem dizer “os meus bailarinos”...:) J as duas coreografias que iremos apresentar juntos daí a uma hora numa sala expectante cheia de clientes, gerentes e donos do local.
“Depois de tantas voltas, como vim aqui parar?!”
Dou uma vista de olhos, pela primeira vez, no camarim do “Nile Maxim” que é, como imaginei, no porão do barco. Não sou fã de porões e rés-do-chão. Gosto de altitutes, sou adepta do “lá em cima” em oposição ao “lá de baixo” mas isso, perante os nervos do primeiro espectáculo neste local, não me aflige por aí além.
Depois do ensaio com os bailarinos, desço até ao meu camarim e tento convencer a minha assistente a desfazer as malas e a começar a preparar o trabalho que se segue. Ela está boquiaberta, observando tudo e todos e deslumbrada com a minha maquilhagem, as minhas conversas com os músicos que vêm, um a um, cumprimentar-me ao camarim, os ensaios e acertos de última hora com os bailarinos...ela pensa em tudo, menos no que há a fazer...

O que há a fazer?
*** Desfazer malas e colocar os quatro trajes do espectáculo em cadeiras separadas com os respectivos adereços e sapatos para que as mudanças de roupa possam ser rápidas e não vá para palco dançando Saiidi com as sandálias que usei no estilo de Alexandria...
*** Maquilhagem e secador de cabelo preparados. A minha água e o meu chá ali à mão e toalha para me enxugar de cada vez que vier trocar de roupa.
*** Últimos recados e acertos com a orquestra e bailarinos. Peço aos bailarinos um último ensaio improvisado em frente às casas de banho. Para uma insegura e perfeccionista como eu, os ensaios nunca são demais. Diz-se que o Fred Astaire era obcecado por ensaios. Era capaz de repetir a mesma peça de dança umas quinhentas vezes...embora não seja o Fred Astaire nem encontre grandes semelhanças entre nós, compreendo esta obsessão.
*** Deixar programa do espectáculo escrito em inglês – para mim – e em árabe – para músicos e bailarinos – nos respectivos camarins para que a coordenação de entradas e saídas bata certo e todas as músicas sejam interpretadas no local certo. Embora o resultado do espectáculo pareça fluido e simples para o público que nos vê, existe um cuidado e uma estrutura sem os quais o alinhamento do show vai por água abaixo. Existem tantas linhas condutoras e trabalho invisível aos olhos do público...

Qual o trabalho que esteve por trás do espectáculo?
*** Esta é complicada de se responder. Começo por referir toda a experiência acumulada que tenho acumulado e que me fez chegar até aqui e ter na minha mão e sob a minha coordenação um grupo de 13 músicos de alto gabarito e tres bailarinos profissionais que actuarão a solo e comigo.
*** O facto de ter querido introduzir bailarinos no meu espectáculo dançando comigo e não apenas como introdução à minha entrada ou preenchendo espaços vazios durante os quais eu trocaria de roupa também foi uma carga de trabalho acrescida da qual não me arrependo.
*** Novas coreografias com os bailarinos, ensaios, trajes para mim e para eles nas nossas actuações conjuntas e escolha de repertório novo.
*** Ensaio com a orquestra na qual incluí alguns novos elementos.


Como foi trazer bailarinos egípcios para o meu espectáculo?


*** Prefiro trabalhar com bailarinos – rapazes – do que com bailarinas egípcias.
Já tive a oportunidade de actuar com ambos e, sempre que existe um grupo de bailarinas egípcias, acabei por assistir a discussões sem sentido, lutas de egos e vaidade a meio de ensaios – coisa que eu jamais permitiria, caso o grupo me pertencesse – e batatada de meia noite porque a fulana fez um comentário sarcástico em relação às mamocas da colega ou a sicrana se “fez ao bife” ao namorado da outra a quem as outras colegas chamam pega! Demasiado para mim...o meu cérebro não processa tanta futilidade e perda de tempo concentrada num só contexto e ocasião!
Elas são, por norma, mais preguiçosas, volúveis e problemáticas do que os rapazes. A minha forma de trabalhar é bastante descontraída mas exigente e seca. Mãos à obra e jamais perder tempo com elementos e assuntos que não estejam ligados à tarefa que temos em mãos. Por essa razão, eu prefiro trabalhar com homens na grande maioria das vezes...por mais que isso me custe admitir. A minha forma de trabalhar é muito similar àquela que a maioria dos homens adopta e entendemo-nos na perfeição. Gosto de profissionais, pessoas competentes e com ética de trabalho e, acima de tudo, concentrados no trabalho que se lhes apresenta e produtivos.

*** Outro aspecto positivo acerca dos bailarinos egípcios é a rapidez com que trabalham, memorizam, processam a informação e executam o que lhes é pedido. “I´m in heaven...”J
Ensaiámos no estúdio do meu querido amigo e professor Mahmoud Reda e coreografámos duas músicas – uma dança moderna com hip hop e jazz e outra Saiidi – numa tarde. Poucas palavras, nada de mexericos e risadinhas tão característicos dos meios femininos e uma concentração absoluta no trabalho. Assim dá gozo trabalhar.

Qual o maior gozo deste novo trabalho?

*** Começando pelo local em si que é um novo desafio para mim, o “Nile Maxim” e pelo facto de estar a actuar paralelamente a duas bailarinas conceituadas no mercado egípcio e internacional. Isso é uma honra para mim.

*** Trabalhar com coreografia – eu improviso a totalidade dos meus espectáculos, sempre... – e bailarinos profissionais com quem me posso ampliar como artista e explorar novas ideias.
Apresentar uma música de dança moderna, hip hop e jazz, tão longe da Dança Oriental que as pessoas esperam ver-me apresentar...uma bela surpresa para quem não sabe que eu danço muitos outros estilos, para além do Oriental.

*** Ter uma orquestra melhor do que a habitual com quem também posso experimentar elementos e músicas novas que não fazem parte do meu repertório usual.

*** Contando com a participação dos bailarinos, poder criar “tableaus” de dança e canto inéditos nos quais tenho a colaboração deste rapazes tão talentosos. É maravilhoso trabalhar com um grupo onde toda a gente é criativa e produtiva. Tudo o que faço e tenho dentro de mim como pessoa e artista se amplia e novas janelas se abrem devido à presença deste novo contingente humano.

*** Acima de tudo, o gozo de enfrentar num novo desafio, audiências e um nível de exposição bastante maior. Sim, existem os nervos à flor da pele, a insegurança e os medos de não estar sempre “à altura”, as dúvidas quanto ao que o futuro trará mas nada disso se equipara à excitação de uma nova aventura que nos lança, claramente, em voos que merecemos viver e para os quais tanto trabalhámos.

*** O que é preciso ver?

É muito comum ver-se alguém bem sucedido e invejar-se o lado solar – como eu lhe chamo – desse sucesso e das suas vitórias. As pessoas adoram, odeiam e cobiçam o sucesso alheio e apegam-se apenas às imagens de sonhos realizados, “glamour” e vitórias mas ninguém está interessado ou tenta invejar todo o trabalho, sacrifícios, perseverança e sofrimento que foram necessários para se chegar até ao cume de uma das muitas montanhas deste mundo em crescimento contínuo.
O lado lunar – secreto, na maior parte das vezes – do sucesso não interessa ao público, apenas o brilho encandescente do sucesso.


Sei, por experiência própria, que tudo tem um preço. Sei o preço que tenho pago pelo meu sucesso e não me arrependo de nada porque jamais vendi a alma ao diabo e me orgulho de cada lágrima e cada sorriso. Apelo apenas a que todos os que cobiçam o sucesso alheio tentem ver o trabalho árduo que está por trás de todo esse esplendor e, finalmente, reconheçam os seus próprios sonhos e lutem por eles sabendo que o preço a pagar pode testar as suas forças, crenças e capacidades humanas até ao limite.
Boa sorte a todos os que têm a coragem de se erguer do seu confortável estado de inércia e arregaçam as mangas face às conquistas que escolheram para si.
Cairo, dia 2 de Junho, 2009

“Novo Curso de Verão no Cairo –
Todo o mês de Junho, em Maadi!”


Ensinar um grupo com quem me reúno dia após dia, semana após semana possui uma magia que não se resume à dança ensinada/aprendida.
Tudo o que faço, penso ou digo no meu trabalho é personalizado. Por mais que tente – e que tenha sido aconselhada a fazer, especialmente aqui no Egipto – não consigo ser fria, calculista e impessoal na minha profissão. A relação que mantenho com os meus músicos é totalmente anormal tendo em conta os problemas e conflitos constantes que a maioria das bailarinas no mercado referem, bem como a relação que acabo por criar com as minhas alunas.
Ensinar Dança Oriental é muito mais do que passar uma técnica, movimentos e passos, sensibilidade musical ou qualquer uma das muitas qualidades que têm de se adquirir durante o processo de aprendizagem – inacabado, permanentemente... – mas também ver em cada aluno uma dor que precisa de ser transformada, insuguranças a serem ultrapassadas e características únicas que pretendo trazer à luz do dia através da dança que lhes ensino.
A Dança Oriental é, para mim, um pretexto para ajudar estas alunas - a quem acabo por me apegar como a amigas – a chegarem a uma vida melhor consigo mesmas. A finalidade secreta das aulas desagua nessa fortuna maior de se amar a si mesmo e trazer o que de melhor se tem ao mundo.
Sinto-me imensamente feliz por anunciar que ministrarei o meu primeiro curso de Verão no Cairo durante todo o mês de Junho e talvez Julho/Agosto, caso tenha disponibilidade para tal.
Caso viagem até ao Cairo este Verão, poderão unir-se ao curso (basta contactar-me e pedir detalhes através do meu email: dancemagica@gmail.com ou telemóvel : 002 – 012 258 8817

*** O que mais te irrita no Cairo?!

Observei uma das alunas da aula de hoje enquanto executava um exercício proposto e não pude deixar de notar como estava tensa, nervosa, com uma expressão corporal e energética agressiva e muito zangada.
“O que mais vos irrita no Cairo?!” – Foi a pergunta que fiz assim que parei a música e olhei nos olhos às alunas que estavam na minha frente, sabendo que a primeira a saltar com a resposta seria a aluna em quem eu tinha sentido tanta tensão e desalinho. Assim que lancei a questão, fui presenteada com um chorrilho de respostas que me recorda, uma vez mais, que os estrangeiros necessitam comunicar, trocar experiências e desabafar (encontrando algum conforto e mútua compaixão) entre si. A vida neste país será sempre um desafio para os locais mas, principalmente, para quem vem de fora. Estas aulas que tenho o privilégio de ministrar são também um ponto de encontro durante o qual as alunas podem libertar tudo aquilo que de positivo e negativo vão acumulando resultado da vivência num país que não é meigo nem fácil para ninguém.

Eis as respostas que obtive do grupo:

Irrita-me que nos digam sempre sim a tudo sem que isso se reflicta na verdade e na acção. Os egípcios jamais nos dirão que não podem, não sabem ou não querem fazer determinada coisa ou atender um pedido. A palavra NÃO parece ser o equivalente a um valente palavrão no nosso idioma.
- Sabe por onde vou para Zamalek? – Pergunta-se a um taxista, confiantes que apenas nos dará a direcção se a souber.
- Então não sei?! Vai sempre em frente, depois vira na primeira à esquerda e encontra uma rotunda. Contorna a rotunda e vira na terceira à direita e está em Zamalek. Simples! – conclui o taxista com uma convicção que nos poderia convencer que é ele, sem tirar nem pôr, o presidente Hosny Mubarak em pessoa num ritual diário de humildade e contacto directo com o povo do país que governa.
Acabamos por seguir, inocentemente, as indicações do taxista e vamos parar ao deserto, bem para lá de Gizé e das famosas pirâmides onde os turistas de todo o mundo querem entrar ( e ali sufocar!).
Palavra e verdade raramente se unem, o que pode causar bastante frustração, desconfiança, descrença e...sim, irritação.

“Bokra, Inshah Allah!” Esta é uma variante da irritação Nº 1 e ambas se complementam. “Amanhã, se Deus quiser” é uma expressão típica dos egípcios e cobre todo o tipo de revezes do destino, significando :
*** Sim, pretendo cumprir o que combinámos mas estou sujeito à vontade e desígnios de Deus e, por isso, a ele me submeto e afirmo que cumprirei a minha palavra se Deus quiser.

*** Hmmmmm....pode ser que sim, pode ser que não. Vai depender da minha disposição e da eventualidade de ter algo mais aliciante em vista. Talvez cumpra o nosso compromisso mas não me responsabilizo se Deus se esquecer de colocar o alarme do meu relógio a tempo de acordar para o trabalho que me comprometi cumprir. Tenho um “feeling” que Deus não vai estar atento ao raio do alarme...hmmmm...é apenas um “feeling” e eu não me costume enganar. É o “feeling” e são as previsões dos jogos do Farense. Raramente me engano...mas, se Deus quiser...

*** Não, pá...acordar cedo numa sexta-feira e, ainda por cima, no Verão é para os parvos e fracos de espírito! Não me vou levantar às horas que me pedes para cumprir com o combinado mas coloco Deus no meio da equação e rezo – não literalmente, porque planeio passar a manhã na cama com a minha Zeina/Mona/Leyla... – para que não me chateies a cabeça quando sentires que te deixei pendurada. Não tenho a mínima intenção de cumprir com o combinado mas dizê-lo na tua cara seria falta de chá. No fundo, é preferível deixar-te especada à minha espera do que dizer-te que NÃO, embora também isso não possa ser dito na tua cara.

Falta de civilidade e educação nas ruas, lojas, departamentos público de todo o género e no meio do trânsito. A matrona coroada de ouro e enfestada de perfume epidémico que se coloca à frente de toda a gente na fila de espera dos correios, os carros que nos ultrapassam sem aviso nem cuidado ou os outros que nos “roubam” o lugar no estacionamento quando vêm que o lugar é, supostamente, para nós depois de termos estado 15 minutos à espera do mesmo, etc.
A sujidade desnecessária e a facilidade com que se lança lixo para o chão, o senhor que urina na via pública como se estivesse na sua casa de banho, a mãe amantíssima que coloca o seu querido bebé a defecar na esquina do supermercado e ainda espera que os transeuntes lhe achem graça e por aí além...todo um cardápio de detalhes apetitosos que, colocados juntos e em dose diária, resultam numa reacção como a que tiveram as minhas alunas:
Explosiva!

· Sim, tudo isso é verdade – upps! – mas, vivemos aqui por opção e, por mais que nos irritemos e tentemos mudar as pessoas e a realidade à nossa volta, a verdade é que estamos a remar contra a maré e, no fim, o lixo continua onde está, o “Amanhã, se Deus quiser” permanece vazio de consistência e quem e desgasta somos nós.

· Proponho sempre o óbvio: Procurar o positivo no país e, em concreto, nesta cidade complexa onde o amor e o ódio andam de mãos dadas. Buscar aquilo que é belo, generoso, produtivo, interessante e não nos fixarmos no negativo que é tão óbvio e discutido por estrangeiros à beira de um ataque de nervos.

· Este exercício nem sempre é fácil de colocar em prática, embora o conceito seja simples! Para mim, é mais uma arma de sobrevivência e subsistência. As perspectivas de envelhecer precocemente, ter um esgotamento nervoso, matar alguém pela popular técnica “aperta-lhe o gargalo” ou tornar-me numa rocha azeda (existem rochas azedas?!) não me aliciam. No fundo, as opções não são vastas ou indefinidas: ou nos concentramos nos aspectos negativos da vida de cá ( e as minhas alunas possuem, na sua esmagadora maioria, vidas muito privilegiadas em comparação à minha própria vida) e insistimos na possibilidade de mudar os outros ou seguimos apreciando o que o país também tem de bom e agradecemos a experiência única que é viver no Egipto.

· É triste quando nos tornamos numa máquina de propagando destrutiva anunciando ao Universo e outras galáxias que este país é torto, molhado, indescritivelmente atrasado e impossível de se aguentar.

· Entre uma e outra opção, qual escolheria?





Cairo, dia 31 de Maio, 2009


“Novo amor – directamente das ruas do Cairo para o meu coração...”

Anuncio a entrada de mais um anjo na minha casa e, alas, na minha vida!
Chama-se “Kenzi” (quer dizer “meu tesouro” , em árabe) e beijou-me as mãos assim que me aproximei dela pela primeira vez.
Encontrei-a com uma patinha partida no jardim do CSA, o instituto onde comecei a dar aulas e apaixonei-me pela sua doçura e alma bonita.
Coincidentemente, uma senhora da Associação Protectora dos Animais aqui do Egipto assistiu ao início deste amor e perguntou-me se queria ficar com a gatinha e tirá-la das ruas (expressão bombástica que me feriu o coração de imediato).
- O meu único problema são as viagens. Sempre que me ausento do Egipto, não tenho quem fique com ela e já tenho uma gata que viaja comigo. Não posso viajar com dois gatos no avião e não tenho coragem de deixar um animal meu num hospital ou estalagem onde eles são mantidos em gaiolas e tratados de forma duvidosa.
- Se o problema é não ter quem cuide dela quando viajares, eu comprometo-me a cuidar dele sempre que necessites. – concluíu a senhora, anulando a única razão que eu tinha para não levar a “kenzi” comigo.

Patinha tratada. Gordinha que nem um elefante hindú e muito arisca. Provoca a “Sweetie” – rainha da casa que agora terá que partilhar com a nova irmã adoptada – e demonstra um fascínio imenso pela máquina de lavar a roupa. Vê-se reflectida no vidro da tampa da máquina e assanha-se face ao seu próprio reflecto. Adora festinhas na barriga – sempre inchada de tanto comer! – e tenta brincar com a “Sweetie” que, pouco a pouco, cede aos encantos da bebé da rua.

Ter trazido mais este ponto de luz para dentro da minha casa é, para mim, uma oferenda de Deus. Teoricamente, sou eu quem a está a ajudar porque evitei que vivesse na rua e lhe dei casa, conforto, comida, protecção, cuidados de saúde e amor mas vejo-a como uma benção que vim acrescentar à minha vida, ao meu interior, ao meu vasto e profundo mapa de afectos onde cabem pessoas, animais, locais, músicas, jardins, entardeceres com pôr-do-sol flamejante e até ventos.

“I am in love...”
Cairo, dia 28 de Maio, 2009

“Duas entrevistas minhas no YouTube e Face Book –
Para fans, alunos e amigos!”

Para quem não assistiu às entrevistas que dei na televisão portuguesa no passado mês de Maio, aqui está um pequeno docinho para amigos, fans e todas as pessoas que, ao longo dos anos, têm seguido o meu percurso profissional e dado o seu apoio incondicional.
Consegui recuperar duas entrevistas das quatro que dei enquanto estive em Lisboa e poderão vê-las no meu Face Book e no You Tube. Basta buscarem :
Joana Saahirah do Cairo interview e poderão ver-me com o Hosny Watatak, o meu percussionista do Cairo que me acompanhou nesta última visita a Portugal.

· Espero que gostem!
Cliquem em:
http://www.youtube.com/watch?v=8o9HaTw0WOA

http://www.youtube.com/watch?v=xRV8SY33_oQ
Cairo, dia 27 de Maio, 2009

“Concerto nocturno no elevador...só podia ter acontecido no Cairo!”

Regressei a casa exausta. Há dias assim...sem razão aparente, cada passo nos pesa como se de chumbo se tratasse e uma noite de espectáculos à qual estou habituada acaba por parecer uma maratona eterna durante a qual nem sequer pude parar para beber água ou respirar fundo.
Há noites assim...apesar das audiências calorosas, da inspiração que chegou quando tinha de chegar e das notas tocadas na perfeição e nos momentos adequados, não pude evitar sentir o cansaço inexplicável que me assaltou ao findar mais uma noite de trabalho.

O meu “chauffer” , recentemente re-admitido ao trabalho, recolhe-me e resgata-me de uma avalanche de pessoas que, como o Verão cairota sempre anuncia, irão inundar as ruas desta cidade pela noite fora. O Cairo pertence aos bichos da noite. Não parece nunca ter sido uma cidade diurna, tanta é a sua intolerância ao calor matutino, à luz excessiva que fere os olhos e quase os impede de ver o caos em que a cidade se transformou. A noite é bondosa, flexível, mostra o melhor que a cidade tem para oferecer e a sua face luminosa no meio da escuridão. O Cairo poderá ser mãe do mundo mas a noite é mãe do Cairo, desejando sempre enxergar apenas aquilo que de melhor o seu filho pródigo possui.

Assim que entro no carro, sei que estou envolvida numa película protectora de metal, ar condicionado e música escolhida a dedo pelo Dj de eleição do condutor. Sinto as minhas pernas pesadas, os meus pés doem-me e os meus cabelos estão em consciente desalinho.Estou pronta para ir para a cama, contrastando com os noctívagos que observo do interior do carro, vestidos a rigor e prestes a invadir cafés, restaurantes, night-clubs e esplanadas da cidades. Nem as pontes escapam...existem negócios de aluguer de cadeiras e venda de tremoços nos passeios de todas as pontes da cidade. Julgando pelo sucesso destes negócios inusitados, serões passados num passeio rodeado pela vista do rio escuro e de milhares de carros que passam num frenesim é o ideal de muitos casais, famílias e solitários excêntricos. O orçamento não dá para mais e, no fundo, o potencial romântico e de beleza de um local reside – queremos acreditar, a bem da nossa sobrevivência! – no olhar daquele que goza este mesmo local. Podemos sempre escolher ver a beleza ou a fealdade e os egípcios são exímios malabaristas de conceitos estéticos. Ninguém no mundo poderia ver beleza nas coisas impressionates nas quais os nativos deste país encontram fascínio..
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3.15h da manhã. Eu, a bailarina, vista como prostituta pela populaça e pelos que deveriam saber melhor, rumo a casa dormitando que nem um anjo abandonado ao seu cansaço. Por outro lado, mulheres cobertas dos pés à cabeça, ruminando propostas indecentes e lançando olhares que lhes valerão generosas quantidades de dólares, caminham por este noite dentro, prontas para o engate. Um clássico do submundo do Cairo, de noite e de dia! As aparências enganam, sempre enganaram, especialmente em sítios onde a verdade é incómoda, agressiva e de extremo mau gosto. Pinte-se tudo, do melhor ao mais aberrante, de cor de mel e finjamos todos crer nas doces mentiras que nos rodeiam.
Adormeço no caminho para casa e sou acordada pelo condutor que me indica, em voz baixa de cautela, que já chegámos a casa.
Entro no elevador e nem quero acreditar que estou, de facto, a chegar a casa!Parece-me uma alucinação de tão boa que é a perspectiva de me lançar à minha cama dentro de dois minutos...
De repente, como não é raro acontecer, o elevador pára bruscamente emitindo um som que deixa bem claro, embora eu não o queira crer – que acabara de ficar presa, uma vez mais, na caixa de mental e correias mal amanhadas a que chamam elevador. “Oh, não...”
Não existem alturas ideais para se ficar preso no elevador mas que este acidente de percurso aconteça às 3.30h da manhã, ao encerrar um dia e uma noite extenuantes é a cereja em cima do bolo, o ponto culminante de um drama que não pode terminar sem uma tragédiazinha “Cairo style”.

O fenómeno já não me é estranho. Clarifico: quando penso que atingi os meus limites de paciência, perseverança, resistência à ignorância, assédio sexual e afins, poluíção, trânsito, níveis de corrupção e estupidez generalizada, eis que me surge um episódio mágico – por certo, requerido por alguns dos meus inimigos de morte, se os tiver! – que vem pôr à prova tudo aquilo que eu pensei que não suportaria. Os limites que imaginamos ter como nossos são bastante mais flexíveis do que alguma vez poderíamos imaginar!

Uma das coisas boas de viver no Egipto – já que acabei de citar as piores! – é poder gritar à vontade em locais públicos e ninguém achar anormal que os decibéis que largo da minha portentosa garganta atinjam níveis tão altos como as sirenes das ambulâncias de Nova Iorque. Posso não saber fazer uma imensidão de coisas mas, gritar, gritar a plenos pulmões...ah...isso eu sei e agradeço os anos de Conservatório de Teatro e Cinema por me terem ensinado como projectar a minha voz de forma a que todo o bairro me possa ouvir, caso me veja presa num elevador às 3.30h da manhã sem perspectivas de saír dali nas próximas horas.
“Abdul Wahaaaaaaaaaaabbbbbbb......” – comecei eu no meu tom operático, ignorando – por trágico-cómicos momentos com laivos “baladi” que já adquiri de tanto escutar, falar e viver por cá.

Também devo acrescentar que o Abdul Wahab é o meu famoso porteiro/guardião da moral e “suposta” segurança do edifício e seus moradores/ espião de vários clientes que faz pequenas fortunas dando conta da vida de uns quantos inquilinos/ bufo que poderia ser mestre da antiga e nova PIDE portuguesas e ávido mestre da colecta de dinheiros de terceiros por dá cá aquelas palha. Agora que o apresentei e fiz honra à sua importante presença, convém também dizer que é ele quem deve ser acordado a meio da noite no caso de alguém – como eu! – ficar preso no elevador do prédio.
Supostamente, e de acordo com a experiência já vivida, ele escutar-me-á gritar a plenos pulmões e encontrará uma solução para me tirar do elevador, possibilitando-me assim a tão ansiada chegada a casa.

Não sofro de claustrofobia, é essa a minha sorte(sorte?! Será que eu apliquei a palavra sorte a esta situação?!”). Também não sou fã de elevadores nem de ficar presa dentro deles a meio da noite mas não entro em desespero nem me rendo à histeria, como seria de esperar se eu fosse uma rapariga egípcia (sim, o feminino egípcio preza o seu lado histérico e usa-o magistralmente para se defender de ataques masculinos e conseguir quase tudo o que quer).
Começo a ficar preocupada quando os tons de chamamento do porteiro passam de altos e informais a estridentes e irritados. “Será que o Abdul Wahab foi passar a noite com uma porteira amante do prédio nº14? Será que o Abdul Wahab se rendeu aos encantos mórbidos e ilusórios do Prozac e tomou uma dose de elefante que lhe apagou o maçarico?!”

Tudo me passou pela cabeça e comecei a colocar a hipótese de passar a noite no elevador. Telemóvel sem sinal de rede, o porteiro ausente e nenhum dos meus vizinhos dando-se ao trabalho de acordar e verificar que tipo de lunática grita pelo nome do porteiro às 3.30h da matina. As perspectivas não são muito animadoras, é certo. No entanto, não me chamam guerreiro-macho – os meus músicos e todos os que trabalham de perto comigo aqui no Cairo – por dá cá aquela palha! Ganhei esta reputação por liderar sempre pelo exemplo e agora, no meio desta noite escura e extenuante em que ainda consigo mover as goelas a todo o vapor- não será altura para negar o título que me foi dado com tanto carinho e até admiração.

Instinto de sobrevivência é algo que já adquiri há tempo suficiente para saber que, em situações extremas ou de desespero, não há nada pior do que “stressar” e deixar os nossos medos aflorarem. Não! Manter a cabeça e o sangue frios e pensar positivo. Ver o que podemos fazer para solucionar a situação e, caso nada esteja na nossa mão, entregar o caso a Deus e tirar o máximo partido da situação. Afinal, a vida são só dois dias!
Verifiquei o nível de limpeza do chão do elevador para eventual situação de acampamento. Nada de muito assustador se comparado com a perspectiva de passar a noite inteira de pé (nada aconselhável por causa do eventual aparecimento de varizes, derrames e dos tais ataques histéricos que, com certeza, me visitariam caso eu tivesse de ficar de pé uma noite inteira).
Não é altura de me armar em esquisita, certo?

Abri a minha mala de maquilhagem e vi que trazia uma garrafa de água ainda cheia, um dos livros que ando a ler e uns lenços que uso como adereços para os espectáculos. Portanto, vistas bem as coisas, o panorama não estava assim tão ruim: a água garante a minha sobrevivência e bem-estar até ao amanhecer, o livro mantém-me entretida e os lenços servirão de mini-lençóis com os quais eu cobrirei este chão de limpeza duvidosa. “No problem!” No fundo, este acampamento “in door” inesperado até pode ser uma experiência fascinante (?!).
Tudo seria perto, muito perto de um mar de rosas se a luz do elevador não se tivesse apagado, já estava eu sentadinha no meu canto de eleição (quem diria que este elevador até era confortável?!) e envolvida na fascinante leitura do meu livro. “Oh, nãoooooooo...”
E agora, sem luz nem velas que possam criar um ambiente romântico entre mim e a noite estrelada que eu não posso ver, sem possibilidade alguma de entretenimento e com a nítida impressão que esta seria uma noite vazia, escura e lenta?...
Não desesperar. Regra nº 1 que se aprende quando se vive sozinha num país-selva como o Egipto onde sabemos que ninguém nos levanta depois de cada queda senão nós mesmos. Quem age de cabeça quente, perde e este mundo, em particular, é só dos mais fortes. A natureza do lado de cá do planeta terra é mais cruel e implacável que aquela que milhões de turistas observam nos safaris africanos ou na Amazónia. A lei do mais forte nunca se fez sentir tão friamente como no Egipto.

Sabendo que não adormeceria, optei por ensaiar duas das músicas que estou a preparar para o meu novo espectáculo. Depois de ter repetido as músicas dezenas de vezes e aproveitando o facto de já ter a voz aquecida e o cérebro mais alienado do que os polícias deste país, desatei a cantar músicas árabes, inglesas, espanholas, etc. Basicamente, tudo o que me veio à cabeça do meu vasto reportório musical ganhou vida e eco naquele elevador solitário que me fazia companhia numa noite em que eu daria tudo para estar na minha abençoada caminha.
Magicamente, como se um voz tivesse surgido do Além a fim de me dar alento e calor, ouvi alguns sussurros felizes vindos do lado de fora do elevador. Pelo que me apercebi, o primeiro sussurro dizia :” Linda, a voz dela é linda...” (em árabe)
Sim, coloquei a séria hipótese de estar a alucinar.

Não estava. Quando, pela segunda vez, escutei um comentário à música que acabara de cantar, apercebi-me que havia gente do lado de fora do elevador que, ao contrário de mim, não prezavam a sua cama e não tinham qualquer urgência em sair da audiência ou fazer-me sair a mim do elevador.
“Abdul Wahab?! És tu quem está aí?” – Perguntei eu ainda com o receio de que aquelas vozes fossem criações da minha exausta mente.
Seguiu-se um silêncio no qual eu pude sentir a respiração pesada de duas pessoas ou mais e sussurros imperceptíveis mas claros e muito próximos de mim.
“Quem está aí?! Abdul Wahab?!” – Continuei eu, já claramente irritada ( a teoria do sangue frio não dura para sempre...).
“Sim, madame. Sou eu. Quer sair daí?!” – Respondeu ele com uma passividade e um tom tão tranquilo que me enervou ao ponto de querer trepar às paredes do elevador.
“Claro que quero saír daqui! Fartei-me de gritar por ti e nunca me dei conta que estavas do lado de fora do elevador...porque não me disseste que estavas aqui?!”
“O Mohamed (seu irmão) veio chamar-me porque ouviu a madame cantar tão bem que queria que eu e o Abdo (o outro irmão) também a escutássemos...e quando aqui chegámos ficámos felizes porque a madame tem uma voz muito bonita!”


“O quê?! Vocês estiveram do lado de fora do elevador este tempo todo a ouvir-me cantar e não me disseram nada?! Vocês são estúpidos ou estão ou beberam?! Tirem-me daqui imediatamente.” Concluí eu em total incredulidade por descobrir que estes tres personagens tinham assistido ao concerto “ao luar” sem nunca me ter tentado ajudar a sair dali para fora.
Ignoraram os meus gritos e pedidos de ajuda mas vieram quando me ouviram cantar e não lhes passou pela cabeça que aquele concerto improvisado era apenas uma estratégia de sobrevivência que duraria até ao momento em que alguém com um cérebro humano me viesse “salvar” do elevador encalhado.
Muito a contra gosto, lá arranjaram maneira de abrir a porta encalhada do elevador, meu parceiro de devaneios nocturnos, e ouviram um raspanete monumental para o qual eu pensava que já não teria energia.

Enquanto eu agozinava no interior daquele elevador escuro, cantando para não enloquecer, aquelas tres personagens de banda desenhada estavam sentadas do lado de fora do “concert hall” admirando a beleza da minha voz e a escolha sofisticada do meu repertório do alto das 4.00h da manhã... Será isto normal?

Como em tudo o que está ligado ao Médio Oriente, o termo “normal” não se aplica a nada. “Normal” é relativo, inócuo, insignificante, uma aberração da linguagem humana que, de modo algum, se aplica à realidade dos seres que habitam esta zona problemática e fascinante do mundo.