Friday, July 17, 2009















Cairo, dia 15 de Julho, 2009

“ GRANDES espectáculos, Om Kolthoum e stress...”

*** A minha cabeça anda à roda com tantos anseios, ideias e projectos que, de repente, se podem realizar. Ainda não caí em mim e senti, na verdade, a benção que me foi oferecida (com um preço a pagar, como tudo o que nos é “dado” no Egipto!). Nada me foi dado de mão beijada. Cada espectáculo que apresento é ganho à custa de muito talento, cabeça e trabalho árduo. Será que os meus neurónios resistem a tanto esforço constante?!

*** A transição que fiz para o “Nile Maxim” é um passo que já ansiava há imenso tempo mas que, devido à realidade que me rodeia e aos “timings” divinos que tudo regem, ainda não podia realizar até que proclamei a mim mesma e perante o Universo: é agora ou nunca.

*** Conseguir actuar neste local – competindo directamente com duas das bailarinas mais experientes e conceituadas do Egipto, Randa Kamel e Asmahan – sem me prostituir ou ceder um milímetro que fosse do meu orgulho e dignidade é, em si, uma benção. Conheço o mercado em que trabalho. Sei como foi que cada uma das bailarinas começou a actuar e através de que cama o conseguiu. Sei demasiado para ser inocente e mais do que preferia saber.
A ignorância pode ser umaa benção, outro género de benção pela qual anseio frequentemente.

*** O convite chegou-me depois de quase quatro anos de trabalho incessante e sem qualquer tipo de auxílio, publicidade, ajuda. Estive imersa no meu mundo de arte e amor numa cave onde, pouco a pouco, músicos e audiências (especialmente, a egípcia) me foram descobrindo. Graças a Deus!
Como o tempo passa a correr, meu Deus! E como os quase quatro anos se dissolvem em nada quando penso em tudo o que vivi e evoluí.

*** Não entrando pela porta dourada da cama, há que trabalhar o triplo de quem lá está por essa via. Disso eu já sabia. Assim passo os meus dias, entre a burocracia interminável do meu novo contrato e visto de trabalho, novos trajes, programação, coreografias e roupas de bailarinos, cantorias (sim, eu canto em árabe!) and quebra-cabeças diário que escolho para mim mesma na busca de novas/velhas músicas que me apaixonem para dançar.

A sede da criação devora-me e eu sinto-me uma máquina de criar trabalhando incessantemente, com a noção clara de que cada noite, cada espectáculo é único, um privilégio que não devo tomar por garantido. O meu sucesso ganha-se com trabalho sem tréguas. Nenhuma mão de auxílio no horizonte, nunca lá esteve!
Apenas escuto vozes derrotistas de músicos que se queixam que a arte acabou no Egipto ou de gerentes perdidos clamando aos céus porque o público não frequenta os locais de espectáculos. Uma choraminguice geral que a nada leva!

“Sim, mas não vale a pena choramingar. Há que seguir em frente e fazer o melhor das circunstâncias em que vivemos. Chorar e lamentar nunca resolveu nada.
Se a realidade não é o que desejávamos que fosse, porque não colocar mãos à obra e arranjar soluções para trazer de volta o público às casas de espectáculo?!
A mudança está nas nossas mãos...” Digo eu aos meus músicos quando nos reunimos antes de cada espectáculo. Eles respiram fundo, exaustos, e olham para mim como se fosse Saad Zaghloul, o pai da Independência do Egipto (bye, bye, ingleses!).

*** Os espectáculos desta noite foram simplesmente FANTÁSTICOS. Parece que todo o senhor ou madame que se pode apelidade de VIP estava lá para me ver.
A pressão era muita e tudo tinha de estar perfeito. Verifico a roupa dos músicos, o som, o programa, os bailarinos e os adereços. Os meus trajes e toda a parafernália que a eles está associada estão organizados por ordem em cadeiras que me esperarão para mudanças de roupa rapidíssimas no decorrer do espectáculo.

*** Dispenso a minha assistente. Dou-lhe a câmara de filmar e digo-lhe que se divirta assistindo ao espectáculo. Ela está lá, supostamente, para me ajudar a trocar de roupa e tornar estas corridas contra o tempo o mais fáceis e velozes possível mas, na realidade, assim que me dispo ela fica especada a olhar para mim e faz nada do que eu necessito que ela faça para me ajudar a preparar-me para o palco.

*** Deleite (o espectáculo):

Faço a minha entrada com bailarinos e depois a só. A estrutura que montei está a solidificar-se e eu já perdi o medo de me esquecer dos passos nas sequências de dança com os rapazes.
Assim que entro, e depois de ter sido avisada milhares de vezes relativamente à mesa dos VIP que vieram verificar a qualidade do “bife português” , escuto o meu nome em gritos carinhosos de uma audiência que desconheço mas que, de qualquer forma, me conhece a mim e não se inibe em manifestar o seu apreço.
Isto é o que os egípcios têm de melhor: participam activamente nos espectáculos, reagindo activamente à bailarina. Por vezes, vê-se inveja e cobiça na face das egípcias que não engolem o facto de eu ser estrangeira. Outras vezes, vê-se a reticência monstruosa na cara de homens e mulheres que, momentos mais tarde, estão rendidos à arte. Sem fronteiros nem nacionalidades. Seja como for, o público egípcio mostra sempre o que sente e pensa e isso é um desafio que adoro enfrentar. Ser apreciada. Aceite numa profissão onde sou vista como uma intrusa. Que desafio...


*** A noite está a ser maravilhosa. Um espectáculo de uma hora de puro entretenimento já lá vai e agora o segundo da noite com os tais VIPs esperando o melhor (ou o pior?!) de mim.
Desço as escadas íngremes que me levam ao camarim para concluir a última mudança de traje. Os bailarinos e a orquestra fazem tempo no palco até que eu chego e os gerentes já haviam comentado que o palco sem mim torna-se demasiado vazio e o público queixa-se. Que fazer?! Poderei eu mudar de roupa em cena??? (lá poder, poder, até posso...seria um “outro” espectáculo um pouco fora da minha “onda”!).

Visto uma série de peças de roupa, troca de sapatos, top, “gallabeya” baladi, gallabeya e boné saiidi, retoca a maquilhagem e o cabelo, seca o suor que me escorre fluentemente pelas costas e pelas pernas abaixo...estou quase, quase pronta quando o fecho do meu top decide abrir-se e eu verifico que a presilha que une as alças se soltou. “Oh, meu Deus....agora não! Este é o pior momento para remendos, linhas e agulhas... e os meus bailarinos fazendo tempo lá em cima onde tudo acontece sem ideia de que eu estou a desesperar procurando a minha caixinha de agulhas e linhas, o kit de urgência para estas ocasiões. “

*** Peço a Deus que me ajude, sei que estou a demorar-me no camarim muito para além do aceitável e os gerentes já devem estar a bufar por todos os lados...nada a fazer senão esquecer a ajuda de Deus – que parece estar a gozar com o meu desespero – respirar fundo e fazer o que há a fazer, evitando pensar no que se passa no palco até que eu lá chegue.

*** Corro para os meus bailarinos, tento compensar o terrível atraso atraso com entusiasmo e inspiração extra enquanto danço. O público sente-o e parece esquecer que estive no camarim o tempo suficiente para assar um frango do campo (mais duro e tenro do que os de aviário e, por isso, mais lento de cozinhar).

*** A noite termina em delírio total. Estou esgotada. Estes espectáculos/desafio dão-me uma energia sobre-humana mas também ma roubam como se eu fosse um balão em pleno voo ao qual é retirado todo o ar apenas num segundo.
A ovação é total e o grupo VIP – bem como todo o público! – está rendido. Eu prosto-me agradecendo à audiência, aos meus músicos e bailarinos, a Deus. Sorrio e respiro fundo olhando à minha volta e tentanto sentir os pés no chão.
Sim, é verdade. Estou AQUI. O sonho de tantas bailarinas de todo o mundo. O meu sonho ou parte dele.
Olho para os meus bailarinos e para o candelabro que me cobre a cabeça como uma benção ou um baptismo de luz. Custa-me a acreditar que cheguei até aqui e sei, no entanto, que este talento, perseverança e força que me têm feito crescer são mimos – ou castigos - de Deus pelos quais devo estar sempre grata.

*** Regresso ao camarim, olho-me ao espelho e repito, uma vez mais e já em árabe pela força do hábito, “Graças a Deus” (“Il hamdulilah”). Uma vez mais, as musas da inspiranção estiveram comigo (podem não estar!), o público recebeu-me de braços abertos e todos os intervenientes no espectáculo tiveram saúde e energia para dar o seu melhor. Il hamdullilah!

*** A minha assistente recolhe e arruma roupas, acessórios, os meus novos “toura” (espécie de “sagats” grandes usados pelos sufis) , maquilhagem e tanta traquitana que compõe o pré-espectáculo e eu estou inerte, sentada na cadeira que descansa em frente a um espelho quebrado, respirando fundo, tentanto tomar consciência de tudo o que me está a acontecer.
Penso para mim mesma: “Se mais oportunidades me forem dadas, farei melhor e melhor. Soltaram o leão da jaula e não há forma de o parar...graças a Deus, uma e outra vez, sem parar...”
Para verem um clip, parte do show, cliquem neste link:

*** A caminho de casa:

O taxista que nos leva até casa – assustado com os bastões, chapéus e malas com roupas minhas e dos bailarinos – fala consigo mesma, totalmente distante e indiferente à minha expressão de surpresa que parece dizer:
“O que é que lhe deu!? Com quem está ele a falar?!”

Abrimos as janelas e deixamos entrar esse ar inimitável do Verão no Cairo. Brisa fresca e arrogante desalinhando o que resta do meu penteado e da minha maquilhagem já esborratada depois de tanto trabalho.
De repente, e enquanto eu fecho os olhos e simplesmente respiro, ouve-se a voz de Om Kolthoum e o taxista abandona o seu amigo imaginário para se juntar à diva que canta algumas das minhas canções favoritas numa cassete com aquilo a que os egípcios gostam de chamar “cocktail” musical (partes seleccionadas de várias músicas unidas entre si).

Eu começo a cantar com o taxista, é inevitável. O taxista não parece notar que eu me juntei ao duo que ele criou a partir do seu mundo interno de sonhos e um coração que, a meio da loucura da luta diária, ele tende a esquecer.

Quando chegamos a casa e depois de lhe ter pago e retirado toda a minha traquitana do táxi, ele estende a sua mão calejada na minha direção e oferece-me a cassete da Om Kolthoum, a mesma que liderara o nosso concerto improvisado.
Apanhada de surpresa, eu recuso e agradeço a simpatia.
“Desculpe mas não posso aceitar. Essa cassete é sua. Eu posso apontar o nome da cassete e comprá-la amanhã. Não se preocupe.” Digo eu firmemente.
“Não. Aceite a cassete. Alguém que adora Om Kolthoum como você e a canta dessa forma, merece este presente!” – Retorquiu ele, sem hesitar e totalmente seguro de que aquela cassete me pertencia.
“Il akhla hedeya, walah!” (“ O melhor presente de todos, por Deus!”) - Respondi eu com uma alegria que só me lembro de sentir na noite de Natal quando eu e a minha irmã éramos pequenas e ainda acreditávamos que o Pai Natal existe (apesar de sabermos que o meu pai se vestia de vermelho e colava algodão às barbas sem razão aparente...).

*** A noite não podia ter terminado da melhor forma. Cheguei a casa e abri as portas das minhas varandas para deixar entrar o ar da noite. Uma corrente de ar envolveu a casa e trouxe-me melodias e ritmos vindos da rua. Talvez um par de casamentos no bairro. Consegui destrinçar um solo de tabla famoso nos casamentos, o também célebre “shik shak shok” e o saxofone de Semir Serour tocando a sua versão instrumental da minha querida Om Kolthoum.

*** Já sem maquilhagem e totalmente ausente de energia, paro na escuridão do meu quarto em frente à varanda obscura e começo a dançar para mim mesma ao som das músicas variadas que me chegam da rua. Olho para a lua, relembro os espectáculos da noite, o gesto generoso do taxista que me ofereceu a cassete do meu encanto, estas músicas coloridas de emoções que me chegam da rua às 2.00h da manhã e eu ali...dançando de olhos fechados de mão dada com a brisa desta noite que não podia ter sido mais perfeita.

*** Longe de tudo o que ainda me falta e sem pensar no que já ri e chorei, agradeci, agradeci e agradeci ao ponto de tornar a simples palavra “Obrigada” numa prece. Talvez a única que faz sentido.

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