Cairo, dia 4 de Julho, 2009
“Workshop com Raqia Hassan e actuações do coração”
*** Os workshops de Raqia Hassan – criadora e directora do festival mundial do Cairo, “Ahlan Wa Sahlan” – nunca me desapontam. Na pior das hipóteses, é maravilhoso ver como esta professora se educa a ela mesma (observando outras bailarinas com a minúcia de um cirurgião) e nunca deixa de dançar mostrando o que de mais humano existe nela.
*** Este workshop não foi excepção. Não posso dizer que aprendi novos movimentos ou vi uma coreografia genial mas aprendi de outras formas e tive esse prazer raro de ver alguém dançar com gosto e de coração aberto, sem se preocupar com os anos que tem em cima ou com as gordurinhas extra (ou outras indelicadas verdades de facto que não interessam para nada quando se dança mesmo bem!).
*** A sala estava apinhada de gente de tal forma que raramente vi os movimentos que estavam a ser feitos mas, conhecendo o vocabulário típico desta professora, pude deduzir o que estava a ser feito e assim seguir o workshop que resultou mais da minha perspicácia em deduzir o que não vejo do que de qualquer ourtra coisa...
A canção escolhida era fantástica, como sempre. A Raqia tem um ouvido inteligente, sabendo muito bem escolher músicas modernas e com conteúdo romântico – potencial expressivo – que sirvam para a Dança Oriental.
A escolha recaíu em Wael Ghassar, cantor libanês que se parece com uma lagarta das couves.
*** Estes workshops servem-me como “revisão da matéria dada”, como exercício de humildade (lembrar-me e relembrar-me de que sei muito pouco, apesar do conhecimento, experiência e mérito acumulados) e como inspiração para as minhas próprias coreografias embora eu tente sempre fazer o oposto daquilo que está a ser feito no momento (sempre fui contra as marés...). Treino, diversão, prazer de ver alguém dançar com paixão e momentos em que algo essencial é dito, fazendo a diferença na forma como danço e vivo daí em diante.
*** “ Vocês devem dançar o significado da canção e não apenas o seu ritmo e melodia. Uma canção é composta por uma história, uma letra que conta algo que vocês não podem ignorar. Quando dançam, deverão saber o que está a ser dito e transmiti-lo com os vossos movimentos, sentimento sincero e expressão.”
Isto foi o mais importante que já alguma vez ouvi a Raqia afirmar. A questão da interpretação das músicas não é nova para mim que vivo e actuo no Cairo onde nos exigem essa mesma interpretação de músicas tão complexas como as de om Kolthoum. Também não é um conceito novo para as alunas que já estudaram comigo porque o friso incessantemente e, no entanto, não deixo de surpreender-me com esta nota importante proferida a meio de um workshop apinhado de alunas que estão mais interessadas em memorizar passos para mostrar ao mundo do que em APRENDER o que significa DANÇAR.
*** É comum ver-se, no mundo inteiro, a prática de Dança Oriental sem qualquer conteúdo ou interesse (no meu ponto de vista) precisamente porque se trata de um amontoado de passos e movimentos sem conteúdo que nada querem dizer. O idioma em que as canções são cantadas – árabe, na maioria dos casos – também é uma dificuldade acrescida porque existem milhões de bailarinas por esse mundo fora que não falam árabe mas este é um obstáculo que TEM de ser ultrapassado.
Sugiro que peçam a quem sabe árabe para vos traduzir as músicas que pretendem dançar, busquem significados e informação na internet, não se fiquem pela rama daquilo que é, afinal, uma dança que conta histórias do coração e da alma!
***ACTUAÇÕES DA NOITE NO FESTIVAL “AHLAN WA SAHLAN”
*** Um amigo meu chamou ao Festival a “Convenção do Silicone” (ri-me tanto com esta...) e a denominação não poderia ser mais acertada. Algo está a perverter-se e eu não posso deixar de me assustar com tudo o que vejo.
*** O mundo da Dança Oriental – tanto a nível local como internacional – tornou-se, infelizmente, num aquário de grandes peixes (muitos sem talento), lobbies e amiguismos onde existe pouco espaço para o culto da ARTE em si mesma.
O espírito da dança transforma-se, a olhos vivos e até num evento que visava dignificar a dança oriental, num exercício mercantilista onde uma minoria faz fortunas à custa da ignorância alheia. Triste.
*** Assim sendo, o que antes era um palco apenas para profissionais, tornou-se uma montra de exibição de “marketing” dos que sabem o que estão a fazer e dos que não têm a mínima ideia do que é um passo de dança. O sistema de actuações do Festival rege-se por um pagamento que qualquer pessoa pode efectuar sendo que, em troca desse dinheiro, o palco ( e o nome com a publicidade que a ele vem agregado) do evento passa a ser seu. A qualidade ou o nível da pessoa que se apresenta não são questionados, basta que pague o que lhe é pedido. Isto dá origem, logicamente, a exibições que mais parecem pesadelos ou episódios cómicos de mau gosto... e, no entanto, o vil metal continua a rolar, a entrar, a entrar e a delapidar o que levou quase 10 anos a construir (o Festival de Raqia Hassan celebra o 10º aniversário).
*** Alunas de todos os níveis apresentando-se como profissionais ( lançando a mensagem perigosa de que “qualquer um pode vestir um traje e fazer a macacada que desejar e assim ser chamado de profissional ), “profissionais” que não sabem distinguir um passo do outro, personagens estranhos que ali caem do céu tentando vender o seu peixe totalmente fora de contexto (como um mexicano de “sombrero” monumental que se apresentou tocando uma flauta peruana misturada com tabla egípcia perante as mil bocas abertas e um silêncio sepulcral de quem não está a entender nada do que ele ali se está a passar...), “freaks” de todas as espécies montando números que o próprio “Cirque du Soleil” classificaria de exóticos e absurdos...um desfile de tudo menos bailarinos e, no entanto, com pontos de luz inesperados...
***Eu estou sentada com dois amigos egípcios – também bailarinos – e com a Souheir (actual professora de dança e anteriormente, uma das grandes estrelas da Dança Oriental na Argentina) que mantém uma esperança admirável na perspectiva de ainda podermos ver alguém DANÇAR. Dançar, mesmo. Nada de números circenses ou mexicanos de pífaro peruano na boca (nada contra!), apenas DANÇA.
Será muito difícil pedir isto quando estamos em pleno Festival Mundial de Dança Oriental do Cairo?!
Depois de quatro anos de vida no Cairo, a esperança em sonhos destes é algo que já tendi a perder, substituindo boa vontade por cinismo e uma descrença total na possibilidade de, a esta hora do campeonato, ainda ver alguma coisa que valha a pena.
Um casal de chineses senta-se na nossa mesa e a rapariga reconhece-me. Abraça-me e pergunta-me se sou eu a Joana. “Sim, sou eu mesma” (diz que sim!).
Ela inumera as vezes que me viu actuar – Festival do Nile Group e shows do Cairo – e banha-me com elogios e carinhos tão exagerados que soaria mal repeti-los aqui. Eu sinto-me feliz e agradeço. Sabe tão bem receber um feed-back sincero do nosso talento, trabalho, suor, risos e lágrimas!
*** E, de repente, quando eu já estava a arrancar os meus próprios cabelos e a cantar heavy metal em mandarim, eis que surge a senhora que salvou a noite (na minha perspectiva):
Uma senhora americana de setenta e tal anos com mobilidade muito reduzida – devido a doença, idade, condição física visivelmente debilitada – e uma auto-confiança invejável que subiu ao palco com “sagats” e me deu os únicos minutos de prazer de todo o serão.
Devo dizer, a bem da verdade objectiva, que a senhora praticamente não se moveu mas o prazer e a confiança que emanava do movimento mínimo que fazia eram suficientes para nos fazer sentir a música, provocar-nos, tocar-nos, captar a nossa atenção através das amarras raras da alma.
As reacções da maioria dos presentes –bailarinas jovens com a arrogância que só a ignorância pode causar – foram negativas e até de deboche. A senhora manteve-se totalmente imune ao escárnio daqueles que julgam saber mais e melhor e que a vêem como uma louca sem noção da sua idade ou condição física e eu admirei-a do fundo do meu coração. As lágrimas vieram-me aos olhos por várias razões:
Primeiro que tudo, adoro ver uma mulher com M grande. Uma mulher que não pede desculpa por ser quem é, pela sua idade, condição ou aspecto físico ou outras aparentes condicionantes que impedem tantas mulheres de serem elas mesmas e darem tudo o que poderiam dar ao mundo.
Segundo, adoro ainda mais uma pessoa corajosa e auto-confiante, capaz de se manter sólida e em paz no seu propósito (mesmo face ao escárnio do público que a vaiou e se riu dela).
Terceiro, a capacidade de emocionar e tocar o coração da audiência não está, uma vez mais o comprovo, na quantidade de movimentos que se fazem ou tão pouco na técnica elaborada que alguém exibe. Sem se mexer mais que alguns centímetros e com um leque de movimentos reduzidíssimo, esta senhora transmitiu aquilo que todas as outras “bailarinas” jovens não tinham conseguido transmitir, distraídas com os seus corpos tonificados, o silicone e o brilho dos trajes que levam como se fossem para um desfile de moda.
A mensagem de que todos, em qualquer idade, podemos produzir ARTE – mesmo que se trate de uma bailarina e, por isso, dependa do corpo e da sua forma física – e ir ao encontro do que é essencial: EXPRESSAR O SENTIMENTO E A ALMA DA MÚSICA QUE SE INTERPRETA.
*** Curiosamente, ou nem tanto, a senhora do escárnio geral veio sentar-se na minha mesa e começou a conversar espontaneamente com a minha amiga Souheir que a felicitou pela bonita dança e pela sua coragem.
“A dança salvou a minha vida, sabe?!” – Disse a senhora à Souheir, ainda recuperando da actuação tão “sui generis” que ela nos oferecera.
“O meu médico foi bastante claro comigo. Ele disse-me que recuperei das minhas operações por causa da dança e da minha vontade de me movimentar. Senão fosse por isso, eu estaria imóvel até hoje.” – Continuou a senhora com as lágrimas prontas a caír-lhe dos olhos cansados.
*** Eu escutei a conversa mas mantive-me à sua berma sem comentar nada da história da vida que ela, entretanto, começou a desfiar como se nos conhecesse intimamente.
Não pude deixar de pensar no poder fantástico desta senhora, no seu exemplo de força e auto-confiança, nessa lembrança útil de que o amor pelo movimento e pela dança nos podem salvar porque são formas poéticas de lutar pela vida.
*** Alimento para a ALMA (detalhe fantástico da noite):
Enquanto via a senhora – heroína, heroína... – brilhando com toda a sua alma no palco, pensei na energia que a maioria das bailarinas perdem questionando os detalhes do seu corpo, imperfeições, peso e medidas com calorias recheando os seus pesadelos e carregando a sua dança de energia negativa que tira o brilho àquilo que deveria ser puro PRAZER.
Ali estava esta senhora de setenta anos e as rugas que lhe pertencem por direito de vida vivida, uma barriga monumental e uma cintura inexistente ladeada de braços querubinos mais rechonchudos que as beldades renascentistas de Rubens e, no entanto, uma LUZ imensa que vinha do facto de ela se sentir bem com ela mesma, aceitando totalmente tudo o que a compõem e transformando aparentes defeitos em puras obras de arte da natureza como montanhas esculpidas pelo tempo, ventos e tempestades.
MARAVILHOSO e uma chapada de luva branca para todos os bailarinos – artistas em geral – que se desfazem em esforços ténicos e estéticos, esquecendo-se de que o amor próprio e a capacidade de transmitir o que nos vai na Alma não passam pelos códigos de beleza estabelecidos por cada sociedade.
A arte está além, muito além do superficial mundo de modas, pressões psicológicas e torturas dirigidas ao feminino que deixa de valorizar o que há de único em cada uma de nós e se preocupa em contar calorias.
Uma lição (mais uma!) vinda de onde menos se espera.
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