Friday, July 17, 2009

Cairo, dia 13 de Julho, 2009

“Espectáculos , compras “baladi” e as lições da minha assistente”


*** A experiência de actuar num novo local ( com novos músicos e bailarinos) não me assusta, apesar de eu saber que este meio onde me movo é uma selva e que é a lei do mais sujo e ambicioso que, normalmente, reina e singra.
Existem muitas expectativas face ao meu trabalho, muita gente esperando o melhor e ainda mais gente – nomeadamente, outras bailarinas – desejando o pior.
Apesar de saber disso, ninguém me pressiona tanto como eu mesma e, na verdade, já estou habituada a ser posta à prova.














A minha assistente Nagle comigo no camarim antes de um espectaculo...



Quando nada nem ninguém me suporta/protege/auxilia num meio como este, a única coisa que me mantém na “mó de cima” e me faz crescer é o recurso inevitável a um trabalho que seja sempre de alto nível, surpreendente e do agrado do público variado que me ver ver. Agradar a gregos e troianos e, ainda assim, agradar-me a mim mesma, fazendo apenas aquilo que eu considero artística e eticamente desejável.

*** Tudo está às minhas costas e qualquer pequeno erro da minha equipa – inclui orquestra, bailarinos, assistente e até o técnico de som e luzes que eu não conheço pessoalmente! – vem reflectido na minha pessoa e responsabilidade, como um fiel boomerang que regressa à sua origem. A pressão é muita, embora eu tente afastar a sensação da carga do fardo que carrego.

*** Músicos: Tal como a directora de uma escola interna, certifico-me que toda a orquestra está pontualmente presente no camarim revendo o programa da noite.
Reparo no traje de cada um, quem esqueceu a gravata, quem vem com uma camisa de flanela às riscas e se recusa a vestir algo melhor ou até quem acha que uma barba por fazer é sexy, quem vem com os sapatos rotos do tempo da Maria Caxuxa, etc... Uff! Não é fácil tomar conta do meu próprio trabalho, enquanto bailarina, e do trabalho dos demais. Para isso existem os afamados gerentes que são, na prática e a bem da verdade, proxenetas das bailarinas em 99% dos casos. Enquanto não me rendo às delícias do proxenetismo e aos seus vários benefícios, tenho de ser eu a patroa e responsável de tudo e isso acarreta os seus dissabores, bem como vantages (vantagens?!!! Agora, de repente, não estou a ver quais mais tudo bem...adiante...).
Telemóveis desligados e nada de conversa no palco, digo eu com uma serenidade tal que ninguém adivinharia que é esta a 189ª vez que eu faço este aviso (para mim, algo tão básico que nunca me passou pela cabeça que o tivesse de relembrar a músicos com 40 anos de carreira).

*** Bailarinos: Verificar roupas e apresentação geral, além dos adereços que eles terão de levar para palco. Refazer coreografias nos camarins.
“Por favor, energia! Energia, rapazes!” – Digo-lhes eu como se estivesse a anunciar o fim do mundo (algo grandioso e insuspeitado).

*** Técnico de som e luz: Saberá ele o que anda a fazer?! O som é terrível. Escuto alguns instrumentos como se fossem trompetes tocando a altos décibeis nos meus ouvidos e outros como se fossem formigas suspirando entre si.
Precisa de algum ensaio da parte da orquestra?! Sim, não?! Em que ficamos??? Existe uma forma de equalizar todos os instrumentos, caso ele ainda não tenha ouvido falar disso!
Por momentos, sinto-me exasperando e pedindo um segundo para respirar fundo.
Tanta falta de profissionalismo da maior parte dos que me rodeiam e eu como responsável por todos eles, tentando rezar para que não falhem demasiado.
Nunca gostei de responsabilizar-me pelo trabalho dos demais. Responsabilizar-me pelo meu já me pesa bastante porque nunca deixo de dar o meu melhor e assumo total responsabilidade por erros que, eventualmente, occorram e que corrijo assim que me apercebo que há melhoramentos a fazer e que estes estão nas minhas mãos.

*** Assim que a orquestra começa a tocar, a gerente do local telefona-me para os camarins queixando-se do som que está demasiado alto e desnivelado e eu ali, de caras com a minha assistente que não entende porque estou tão exausta, sem poder fazer nada e tentanto concentrar-me para aquele que é, de facto, o meu trabalho: DANÇAR!

*** Digo-lhe que estou nos camarins preparando-me para o palco e que não existe maneira de controlar o técnico de som a esta altura do campeonato, sendo que – além do mais- o som não é responsabilidade minha mas do técnico que é pago para tratar do assunto.

*** Quando subo ao palco já levo um sem número de tarefas cumpridas e várias preocupações que espero não serem visíveis ao público. Entrego-me ao espectáculo e, assim que dou o sinal de partida, ai de quem me chateie com sons ou luzes tortas...este espaço é meu, dos meus músicos e bailarinos e do meu público e a DANÇA – lembram-se?! O meu trabalho??! – toma forma e vida, finalmente...

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*** Depois dos espectáculos da noite, tivemos os espectáculos da manhã com grupos de japoneses e as suas máquinas fotográficas coladas aos olhos.
Sinto saudades de dançar para egípcios. Uma vez mais, este público terá de ser atraído, criado e mantido por mim agora que mudei de local de espectáculos e a minha audiência local me perdeu o rumo. Terão de se aperceber do novo local onde poderão ver-me e o processo de criar a minha própria lista de públicos locais terá início. Mãos à obra e eles virão!

*** Regresso a casa exausta mas a minha assistente – baladi style – insiste em levar-me a conhecer um roteiro de compras igualmente “baladi” onde posso encontrar incenso lá para casa, “lingerie” egípcia que pode ser adaptada a trajes de dança, vegetais já podres que os comerciantes vendem como se tivessem sido arrancados da terra há minutos atrás, material para bordar trajes, sapatos, sumos naturais de manufactura mais que duvidosa e um labirinto de mercados mesmo à porta de casa onde nos podemos perder e passar o dia inteiro às voltas sem que vejamos todas as lojas e esquinas que os compõem.

***Porque razão este trabalho não é para todos?!
Nunca me canso de incentivar todos aqueles que sonham e não temem os riscos e sacrifícios necessários à realização de tudo o que anseiam ver nas suas vidas.
Costumo dizer que sonhar é fácil e todos o podemos fazer mas o trabalho, a acção, a coragem e os passos necessários à realização desse sonho já não são para todos.

Vejo bailarina atrás de bailarina chegando ao Cairo com uma mala cheia de sonhos e ilusões e, uma atrás da outra, regressar ao seu país totalmente desfeita e desmoralizada, amaldiçoando egípcios e o meio sujo da Dança Oriental no Médio Oriente. Quem me fala de corrupção e do facto de apenas se conseguir trabalhar por cá prostituindo-se está, claramente, a pedir uma bofetada pois sou eu mesma um exemplo vivo de que existem excepções à regra – muito, muito poucas... – e que, com talento, um carácter muito forte e um desejo de triunfar maior do que as dificuldades do caminho, consegue-se – honestamente – trabalhar. Tudo leva mais tempo, o ritmo com que se constrói um nome e uma carreira são, sem dúvida, mais lentos do que ritmo de quem tem um senhor de dinheiro e poder nas suas costas mas é possível seguir em frente e realizar aquilo a que nos propusemos.

Bem...digamos que, depois de tres anos intensivos de espectáculos quase diários, o meu nome já circula no mercado como um dos melhores da cidade e do mundo e isto sem que eu me publicite a mim mesma ou tenha quem o faça por mim.
Mesmo assim, sou posta à prova a cada espectáculo dado. Quem toma as decisões de trabalho testa-me até ao limite e vê até que ponto agrado às pessoas mais diversas que por ali aparecem. Depois de já ter provado, noite após noite, que até sei um bom bocado daquilo que faço, recomeço do zero onde todos esperam que falhe, todos me avaliam e dificultam o trabalho e ninguém me dá uma palmada nas costas.
Lidar com esta pressão – e outras – não apaga a gratidão e a excitação pelo novo trabalho, pelas novas portas que se abrem e pelo meu novo espectáculo que me orgulha mais que tudo. Nada apaga nada mas, desmistificando todas as ideias que bailarinas de todo o mundo possuem sobre a vida do lado de cá – o desafio não é para todos.

***Ter de competir com as bailarinas já estabelecidas – que, para mim, são apenas Randa Kamel e Asmahan, ambas estabelecidas no mercado há já vinte anos! – e atrair clientela através da minha arte e não pela cama.
*** Não cair em nenhum erro nem deixar que ninguém da minha equipa falhe para que a avaliaçao seja sempre a melhor.
*** Criar trabalho para mim mesma a partir do zero pois nenhum espectáculo me é dado de mão beijada. Se o público não pede o meu nome, eu, os meus músicos e os meus bailarinos não trabalhamos.
*** Criar espectáculos diferentes com reportório sempre dinâmico, pioneiro e mutável acompanhado por trajes de dança caríssimos que tenho dificuldade em pagar.
*** Manter-me sempre mais e melhor, a cada espectáculo, para que o meu nome circule e eu cresça em termos de popularidade.
Será isto suficiente?!

Por esta e por tantas outras razões que não mencionei, não penso que este trabalho seja para todos. Trata-se de um teste demasiado cruel de força de carácter, perseverança, resistência física, emocional e psicológica, inteligência e calma.

*** As lições antropológicas e sociológicas da minha assistente:

O Egipto visto por dentro através de pessoas comuns que não temem dizer a verdade. Embora a realidade seja distinta para os pobres e para os ricos (financeiramente falando), existem bases comuns em termos de religião, mentalidade e aspiraçoes de vida.

*** A Nagle levou-me ao mercado “baladi” de Maadi, tão perto de minha casa e, no entanto, panorama de uma realidade tão longínqua da qual conheço diariamente.
Fomos em busca de sapatos e adereços para o meu espectáculo, lantejoulas e materiais variados para um traje que ela me está a bordar e uma ronda naquilo que é um autêntico festim para os olhos e, por vezes, uma tragédia para o meu sensível nariz.

Trajes, lojas de sumos naturais onde paramos para beber sumo de cana de açucar (o melhor está no Luxor!), lojas de especiarias onde a Nagle me mostra óleos e mesinhas para tudo e uma máscara de beleza vinda de Marrocos que promete rejuvenescer até a mais encarquilhada das peles.
Passamos também por galinhas e pintainhos engaiolados, “stands” de fruta e vegetais a rondar o pobre ou em plena putrefacção e ainda um restaurante de frangos no churrasco onde homens – não mulheres, excepto nós – se sentam toda a noite vendo futebol e video-clips de cantoras libanesas descascadas e feitas de plástico.

Sento-me numa loja de cassetes (sim, por aqui o povo ainda adquire as ancestrais cassetes!) e cds esperando o chá que eu sei que vem imediatamente parar à minha mão. Ando à procura de novas canções para coreografar – ensinar em aulas e workshops – e para actuar. São ambos campos diferentes, completamente diferentes. As músicas que escolho para o meu espectáculo de cá ao vivo nada têm a ver com as que eu vou buscar para ensinar.

O dono da loja pergunta-me o que procuro e eu respondo: Tudo!
Oriental clássico, folclore, percussão, canções antigas libanesas que se adaptem à dança, shaabi, baladi, tudo o que seja de qualidade e fale deste país com olhos de verdade e carinho!
Uma pilha de cds e cassetes começa a formar-se na minha frente enquanto bebo o meu chá “masbout”, mais doce que o mel e tão pesado que eu posso jurar que é beduíno (o chá beduíno tem um sabor extremamente forte e adocicado).
Apercebendo-se que existe um novo bife estrangeiro na área – embora me confundam, cada vez mais, com as egípcias devido ao meu árabe fluente e à forma “baladi” que adoptei dos locais com quem convivo e que observo atentamente – começam a surgir rapazes de lojas vizinhas apenas para olhar para mim. Isto seria o suficiente para ter um ataque de nervos aqui há uns tempos atrás mas já desisti de me irritar e lutar contra a maré. Se não os podes vencer, junta-te a eles, lá diz o nosso prático e sábio povo português!

*** Warda, Nagat, Fairouz, Mohamed Roushdy, Mohamed Abdul Wahab, Abdel Halim Hafez, até canções antigas da minha querida Om Kolthoum…um desfile de jóias e delírios musicais para os meus ouvidos. Estou no céu.
Acabo por seleccionar canções imprevistas.
Uma nova música núbia da qual farei um “tableau” de dança com os meus bailarinos... um solo de tabla que espero poder editar para coreografar e ensinar, mais dois temas que desconhecia de Om Kolthoum que avaliarei testando se são “dançáveis” ou apenas criados para os ouvidos...
E um tema de Abdel Halim Hafez, outro de Warda – Asmahouni – que já conhecia mas nunca tinha dançado. O mundo da música árabe aberto e escancarado aos meus pés no meio de um círculo de rapazes que me observa perguntando entre si para que raio quer esta estrangeira tanta música nossa!

*** Regressamos a casa com sacos cheios de coisas que não poderia ter encontrado no melhor centro comercial do Cairo e eu preparo-me para os espectáculos da noite.

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*** Mulheres à beira de um ataque de nervos (singela homenagem a Pedro Almodóvar, o director de cinema que compreende as mulheres melhor do que elas se compreendem a elas próprias):


*** Enquanto me arranja um dos trajes que precisa de um toque nos bordados, a minha assistente – senhora Nagle – desabafa comigo informando-me de um dilema típico das mães egípcias e árabes: casar a filha ou não casar, eis a questão.
Espera-se que um filho homem estude, seja ambicioso e arranje um bom posto de trabalho que lhe traga “status” , dinheiro e uma esposa correspondente ao “standard” económico que ele atingir. De uma filha espera-se que estude o menos possível – para não lhe corromper o cérebro,tornando-a demasiado rebelde e pouco apta para casar e ser a dócil, obediente esposa que se espera que seja – e que arranje um bom marido (bling, bling...) enquanto está na idade de ser escolhida. Um pouco como a fruta na altura de ser colhida. Ou se apanha quando está madura ou se deixa apodrecer. Assim são vistas as mulheres.

*** A filha da Nagle tem 17 anos e está a “stressar” porque não quer ficar velha, deixar passar as oportunidades de casamento que lhe estão a surgir agora e acabar como os seus tios, solteiros e alvos de escárnio e pena.
A Nagle explica-me que uma rapariga da idade da Heba – o nome da filha casadoira – não pode perder tempo nem ser demasiado “esquisita” na hora de aceitar a proposta de um potencial marido porque, atingindo os 23-24 anos (idade máxima para o casamento de uma mulher), os pretendentes que caíam do céu desaparecem subitamente e para a eternidade.

*** Um dos pretendentes mostra o apartamento que ele diz ser seu à Nagle, o carro que está a pagar em prestações e o dote que poderá pagar pela mão da sua filha. A Nagle queixa-se de que o apartamento – para lá de onde Judas perdeu as botas! – é demasiado longe da civilização e que a filha vai entrar em paranóia sem poder ir aos centros comerciais, McDonalds e cafés modernos onde a juventude egípcia gosta de pairar (quando os pais o permitem ou às escondidas, sempre em busca de um potencial marido/esposa desde a mais tenra idade).
Ele responde-lhe que existe a entrega de tudo o que ela possa desejar ao domicílio. Nem precisa de sair de casa e expôr-se aos olhares lascivos dos homens que por aí andam sem rumo e sem mulher.
Uma mulher-esposa que se preze reduz, ao máximo, as vezes que tem de sair de casa ( em oposição à mulher ocidental cujo padrão de sucesso e realização pessoal passa pelo trabalho, produtividade e lazer fora de casa) e o potencial marido afirma-se generoso providenciando tudo o que a rapariga possa desejar, tudo à distância de um telefonema.

*** A mãe – Nagle – carrega a fotografia de vários pretendentes no seu telemóvel e mostra-os à filha que lhe responde, abnegadamente, “faz o que achares melhor”.
Ela quer apenas um marido, uma casa, filhos, sopas e descanso. O retrato típico da mulher egípcia que ainda não percebeu que, muito provavelmente, se verá encurralada num casamento sem amor nem laços de qualquer espécie, uma catrefada de filhos e uma dependência económica e legal que a prenderá anos sem fio a uma casa, um homem e um destino amargos.
No entanto, se a opção for arriscar ficar solteira, ela não pensa duas vezes em lançar-se nos braços do primeiro desconhecido que lhe queira saltar para cima (legalizando o desejo e a lascívia com o casamento).


*** Assusto-me com isto que ela me conta porque sei que é verdade. Ela própria, mulher trabalhadora que sustenta sozinha um marido doente e acamado e tres filhos que não a auxiliam em nada, parece ser o exemplo de tudo o que uma mulher egípcio não deve ser: Activa. Independente. Trabalhadora. Mais que tudo, LUTADORA (uma qualidade na sociedade ocidental mas um defeito nas sociedades árabes onde as mulheres se querem passivas, submissas e o mais depententes possível).

*** Eu abstenho-me de comentar a situação. Ou se casa com um dos pretendentes que nunca sequer falaram pessoalmente com ela e arrisca encurralar-se num molho de bróculos negros do qual não poderá sair mais tarde ou prossegue os seus estudos e se coloca na vulnerável posição de solteira, correndo o outro risco de assim permanecer para sempre (o pior destino de todos para uma mulher tipicamente egípcia).

*** A Nagle fala-me destes e de outros dilemas que assolam milhares e milhares de raparigas árabes. Eu não sei que dizer porque não existem respostas definitivas nem podemos prever o futuro. Cada um de nós tem as suas condicionantes e eu não poderia comentar ou compreender a frustração de uma rapariga egípcia que, aos 24 anos, vê o seu rótulo de validade expirado como um produto abandonado na estante do supermercado.

*** Tento compreender estas realidades mas não o consigo fazer na totalidade. Vou tentando...

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