Saturday, August 15, 2009

Cairo, dia 10 de Agosto, 2009

“Telefonema do Além (melhor dizendo, do “Além Cérebro”)


*** Oh, as delícias de se ser mulher – e estrangeira e bailarina! – num país fascinante como o Egipto nunca páram de me surpreender.
Afirmo com uma alarmante placidez que já vi tudo, já ouvi tudo e já presenciei cenas do espectro humano e animal de tal índole que não me admiraria se visse um porquinho a andar de bicicleta. Os meus amigos riem-se quando menciono o tal porco! Vá-se lá saber porquê mas a imagem de um porco rosado a andar de bicicleta despoleta as mais valentes risadas e suspiros aliviados de quem julga que isso não é possível (Um porco?! Montando uma bicicleta?! Nahhh....” ).

*** Pois sim, meus amigos. Neste país de contrastes e deliciosas surpresas constantes, os porcos andam de bicicleta e até de asa delta e, mais surpreendente que estes feitos em si mesmos, ninguém se admira com tal aberração da natureza porque, tal como “moi”, o pessoal de cá está calejado de tal forma que apagou a palavra “impossível” do dicionário. Absurdo é outra das palavras a esvaírem-se a olhos vistos dos dicionários...ah, e lógica e...(a lista é longa, fica para outra vez!)...

*** Hoje recebi um telefonema do Além (Além-cérebro, para ser mais concreta).
Não foram extra-terrestres que me ligaram de Marte tentando convencer-me a comprar uma viagem espacial em promoção mas sim outro tipo de criatura que vive – presumo eu – em cavernas ou em grutas nas profundidades do Mar Morto e que se vislumbra à luz do dia quando nos visita a nós – seres humanos ditos “normais” – colocando em questão noções básicas de inteligência, paciência e utilização produtiva do nosso tempo.

*** Não tendo um gerente que me explore – monetária e/ou sexualmente – e que, por outro lado, me angarie trabalhos extra e faça de ponte entre mim e os potenciais clientes (privados, hotéis, empresários, outros agentes), sou eu quem atende o meu telemóvel egípcio e, assim sendo, exponho-me a todo o tipo de interlocutor.

*** O telefonema de hoje foi emblemático da taxa de desemprego que assola o país e, em particular, os homens de quem se espera que produzam e façam muito dinheiro para sustentar esposas e famílias inteiras.
Não havendo trabalho nem relações pessoais saudáveis e realizadas, um grupo de semi-extra-terrestres lança-se ao passatempo de telefonar a mulheres que eles julgam ser prostitutas (todas as mulheres que não são suas familiares ou que não andem todas cobertas segundo os preceitos religiosos mais extremistas) e, directa ou indirectamente, tentar estabelecer uma relação express que, no meu caso, tentam criar a partir do pretexto do meu trabalho.

*** - Salam ualekum. – Lança o porco que anda de bicicleta.
- Aleekum salam... – Responde a vítima do porco.
- Estou a falar com a Madame Joana? – Continua ele num tom muito sério.
-Sou eu mesma. Quem fala?
- Sou o......(escolham um nome árabe do mais imperceptível que há e coloquem-no neste espaço em branco...soltem as rédeas da vossa imaginação...). Sou actor e produtor e tenho uma fotografia sua nas minhas mãos. Sei que a Joana é bailarina e ando há muito tempo tentando alcançá-la mas só agora consegui.
- Certo. Posso perguntar-lhe como conseguiu então alcançar-me e quem lhe deu a minha fotografia?!
- A sua fotografia está no nosso escritório (outro nome imperceptível nesta altura do campeonato).
- O.k. Diga-me que assunto o leva a telefonar-me?
-A Joana é de Portugal, não é?! (começa a conversa da treta...)
-Sou, sim senhor.
- Ah, Portugal!!! A melhor gente! Gente muito respeitável e bonita...que maravilha! É de onde, exactamente?! De Lisboa?!
- Sim, de Lisboa. Mas, por favor, diga-me qual o assunto do seu telefonema ( e é aqui que eu começo a ficar nervosa e a tentar destrinçar se este é apenas um empresário egípcio abelhudo e amante da conversa de chacha ou se é um atrasado mental – o porquinho, o porquinho! - a passar o tempo tentando engatar uma vítima por telefone).

- Onde vive a Joana? – Pergunta o condutor da bicicleta (ai o porquito!) ignorando os meus pedidos de esclarecimento quanto ao assunto do telefonema.
- Vivo no Cairo. – Respondo eu, não querendo ser mal-educada mas, simultaneamente, começando a sentir uns calores familiares subindo-me pela garganta acima.
- Onde, no Cairo? Pode ser que vivamos perto um do outro?!”

(E aqui dá-se a explosão, ainda que controlada pelo cansaço e pela quantidade monstruosa de vezes que já recebi telefonemas destes).

-Desculpe mas não vejo por que razão deva dizer-lhe onde moro ou o que isso poderá interessar para o meu trabalho. Diga-me qual o motivo do seu telefonema e, se esse motivo não for profissional, por favor desligue.
E gostaria de saber quem lhe deu as minhas fotografias já que não o conheço nem a si nem ao seu escritório.

- Alguém deixou as suas fotografias no meu escritório, não sei quem.
Numa delas tem um decote muito generoso e noutra aparece apenas a sua cara mas a do decote é, realmente, muito expressiva. A do decote...decote...decote...deco...deco...de...de...de...d..d...d...d....d... (o extra-terrestre encalhou no raio do decote!)

-Sim, estou a ver...(a estupidez dele, não o decote!)

- Queria apenas saber se moramos perto um do outro...só isso. – Continua o caçador com uma calma e uma perseverança que são típicamente egípcias e tipicamente irritantes.

- Vou desculpar-me uma vez mas não tenho de lhe responder a essa questão. Qual é o assunto de trabalho que tem para me propôr?! – Insisti eu, sentindo um valente berro querendo dizer olá a este mundo de loucos.

-De momento, nada. Mas... vi a fotografia do decote e achei podia ligar-lhe.

Ahhhh... (lembra-te que estás no Egipto, Joaninha...olha o porquito e a bicicleta...lembra-te das delícias do país que te acolheu...).
Como é que eu, que até me julgo uma moçoila inteligente, não pude entender que quem se deixa fotografar com um decote está “mesmo a pedi-las”?! Como foi possível que eu, moçoila respeitável e de boas famílias me deixasse fotografar com um traje de dança que inclui a exposição deslambida do meu decote (que nem é assim tão generoso quanto isso!) sem esperar um feed-back igualmente vergonhoso?!
O que o porquinho a andar de bicicleta me estava a tentar explicar – indirectamente, como bom egípcio que é – é que o facto de eu ter fotografias com decote a circularem no mercado da dança só pode querer dizer que ando à procura e à espera de telefonemas de anormais que não conheço de lado nenhum tentando “fazer-se ao bife português”!
Como posso ser tão lenta de raciocício?!

- Este contacto é apenas para trabalho. Se o senhor não tem trabalho nenhum para propôr-me, faça o favor de desligar o telefone.

Não lhe dei tempo para responder ou tentar, uma vez mais, inventar uma nova questão pessoal que, talvez (quiçá, quiçá, quiçá...), quebrasse o gelo antártico que nos separava. Persistência e imaginação são qualidades que não se devem menosprezar e os homens egípcios possuem-nas para dar e vender.

*** Assim que desliguei o telefone, pensei no par de minutos e na atenção que desperdicei com mais um porco a andar de bicicleta. Depois de ter visto tantos porcos andando nos mais diferenciados meios de transporte, já devia ter estaleca suficiente para identificar um “esquema de engate” num segundo mas a minha ingenuidade persistente trai-me quando menos espero.

*** O mesmo personagem voltou a ligar persistentemente durante a hora seguinte e, espero eu, deve ter chegado à conclusão que este decote não combina com a sua bicicleta mas, ainda assim, não pude deixar de me surpreender – ainda?! – com a tristeza da vida de tantas pessoas como esta que empregam o seu tempo e dinheiro em tarefas doentias como a caça aos decotes e afins.
Este é um dos passatempos mais comuns no Egipto e um dos sinais óbvios do estado mental e emocional doentios em que os seus residentes se encontram.

*** Os meus sentimentos e profunda pena vão para este, agora desolado, porquinho ciclista.

*** (“Vai mas é trabalhar, malandro!”).
Singela homenagem à minha progenitora e aos “Contemporâneos”, ambos grandes proclamadores deste expressão tão portuguesa.

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