Tuesday, February 9, 2010


Cairo, dia 30 de Janeiro, 2010


“Odisseia musical – Parte II”

“Ensaios, Estúdio, Gravações”



Noite após noite, sentei-me com o compositor Hossam Shaker criando, a partir do silêncio, a música que deverá reflectir um pouco de mim através da dança que dela farei.

A música em questão é a chamada “majancé” (adaptação tosca que os egípcios fizeram do termo francês “marche en scène”, entrada em cena) que todas as bailarinas deste célebre – cobiçado e mal falado – mercado deverão ter para dar início ao seu espectáculo.
Esta música que dá o pontapé de saída para o programa de cada bailarina deverá ser composta para a artista em questão e só ela a dançará.
Finalmente, eu tive a possibilidade (monetariamente falando) de criar a minha própria “majancé” com o compositor da minha escolha: Hossam Shaker.

Etapas:


1. O compositor teve de conhecer-me um pouco e partilhar dos meus espectáculos, ensaios com orquestra, gostos e objectivos para a música em questão.
Durante duas semanas, terminei os meus espectáculos regulares no “NILE MAXIM” e corri, literalmente, para o escritório do compositor onde aí falámos, partilhámos música e experiências de vida e fomos, quase sem se sentir, compondo aquilo que acabou por ser chamado:
“Joana around the world” – “Joana à volta do mundo”.

2. Surgiu a primeira melodia básica, depois outras etapas com as quais se criou uma história, uma estrutura que servisse os meus objectivos e o conceito que eu tinha para o projecto.

Fui específica quanto aos elementos e influências que desejava para a peça musical, a sua dinâmica e exigências mas também tive o cuidade de deixar que a criatividade do compositor voasse e se expandisse.

Ritmo a ritmo, secção a secção, chá depois de chá e os cães a uivar lá fora ao romper da madrugada quando eu já não distinguia o dia da noite...a minha música foi nascendo e crescendo como uma criança que vemos gatinhar e caminhar, gradativamente...

Apercebi-me do campo turvo em que se movem os músicos e os compositores, em particular, para que o génio que possuem se revele.

Nessas noites que passámos juntos trabalhando na música, o compositor levou-me – sem querer – para esse “outro lado” mágico em que a escuridão e a luz se confundem e a criação artística acontece, sem se saber muito bem como.

3. Primeiros ensaios com músicos.A peça começa a ganhar forma mas ainda não se escuta na totalidade. Apenas pinceladas de cores estruturais que depois serão compostas, aninhadas, acopladas com os arranjos musicais e elementos extra que se acrescentam.


A diferenciação clara entre a parte percussiva/rítmica e a parte melódica da música tornou-se ainda mais clara para mim.

4. Convocar músicos para gravação em estúdio, ensaio com os mesmos, gravação do tema. Grande dor de cabeça!

Ao contrário do que eu supunha e do que o compositor me fez pensar (“Os músicos que trabalham com bailarinas são um horror!”), os músicos que apenas trabalham em estúdio são ainda mais preguiçosos e “funcionários públicos” do que os músicos que trabalham nos espectáculos ao vivo e com bailarinas.

No Egipto, existe a distinção clara entre a classe de músicos de estúdio (ditos mais profissionais, educados e talentosos) e os músicos que se “rebaixam” e compõem as orquestras das bailarinas.

Depois ainda existe a questão religiosa – também conhecida, por mim, como a questão do porco espinho ignorante – que diz o seguinte:
Se um músico de estúdio – classe alta, portanto – for contratado para gravar uma música para dança, este deverá recusar o trabalho imediatamente sob o perigo de ser mandado para a dimensão mais flamejante do Inferno.
Como a dança é considerada “haram” ou ilícita aos olhos de Alá, uma música que tenha essa mesma dança como fim também é considerada “haram” e os músicos recusam-se a gravá-la.

Ezzz...ezzz...ezzzz (querido Diácono dos Remédios, porque tiveste tu de vir para o Egipto?! Portugal não te chegava?? E como pudeste tu ser muçulmano se te conheci como católico apostólico romano?!).


Mentirinha piedosa: o compositor pediu-me o favor de mentir aos músicos que vinham gravar o meu tema. A versão inventada era:
Eu sou uma actriz que vem verificar a gravação de um tema para um filme no qual eu participarei.
Resumindo: Palhaçada à moda egípcia.
Estamos no Egipto, o absurdo nunca deixa de me surpreender, por mais anormalidades com que me depare!

Indo contra o improvável, eu própria questionei e corrigi o compositor em vários momentos da composição e da gravação do tema. O normal é a bailarina entregar o trabalho nas mãos do compositor e recebê-lo quando este está terminado sem pestanejar nem reclamar. Eu jamais o poderia aceitar por várias razões (entre elas, o facto de saber muito bem o que quero e não quero para mim e para o meu trabalho).

Tremendo bate-boca com o “tabal” (percussionista que toca a “tabla” egípcia) porque este comentou, com ares de “mete nojo”, que não tocava para bailarinas quando eu lhe pedi algo específico para mim. Mais uma vez, quase me atirei ao homem (embora este não tivesse cabelo para arrancar, como tinha o compositor dos caracóis brancos). Acalmei-me e dei-lhe umas quantas chapadas de luva branca nas quais sou especialista. Peguei na tabla e mostrei-lhe o que queria.

O mesmo percussionista não pôde ser encontrado para posterior gravação porque ( e passo a citar):

“ Saiu do estúdio e foi comprar haxixe com o dinheiro que fizera. A polícia apanhou-o e está, ainda hoje (mais de uma semana após a primeira gravação), entre grades.”

Isto é o Egipto, meus caros senhores! Rir ou chorar? Qual a melhor opção?!

Fiquei surpreendida com a falta de profissionalismo dos músicos que vieram gravar o meu tema. Pagos a preço de ouro e tratados como reis, estes músicos não queriam mais nada senão fazer o mínimo possível, ter dinheiro rápido e fácil na mão e irem-se embora rapidamente para ver o jogo de futebol que passaria na televisão naquela noite.

O resultado não era importante. Importante foi fazerem o mínimo.
Depois de se ter ensaiado o tema inúmeros vezes e gravado mais umas quantas, fui eu quem teve de exigir que se gravasse uma última vez com o nível mínimo exigido porque não estava feliz com o resultado do trabalho. Desta vez, foi o compositor quem desejou arrancar-me os cabelos mas eu não me importei (há coisas piores do que perder uns fios de cabelo). Exigi que essa última gravação se fizesse e foi essa que ficou no produto final, provando que algumas bailarinas até percebem de música (ao contrário do que a arrogância de muitos quer crer).


5. Posso afirmar que fui uma dor de cabeça monumental para o Hossam- compositor - mas penso que o resultado final valeu a pena!



Nota picante:
Quase, quase que arranquei o cabelo (caracóis brancos) do compositor quando ele me disse, arrogantemente, que não compunha para bailarinas (como se isso fosse algo vergonhoso e o seu estatuto estivesse acima desse tipo de trabalho)
Este foi o nosso primeiro encontro e juro que tive de me agarrar a uma mesa e ranger os dentes de forma pouco delicada de forma a evitar o desastre.

Como sou famosa por não engolir sapos de ninguém, claro que tive de colocar os pontos nos “is” e afirmar, docemente, que ninguém teria de fazer favor nenhum a ninguém.
O senhor não se dá ao trabalho vergonhoso de compor para as vadias das bailarinas (raça terrível!), então o senhpr não tem de compor para as vadias das bailarinas! Simples quanto isso.

A minha atitude ofendida deve ter adormecido o preconceito do compositor que acabou por se desculpar do comentário e seguir adiante com o nosso projecto.


QUESTÂO PICANTE:


Como é possível que existam tantos músicos sem amor à Música, à Arte, à BELEZA?
Puros funcionários públicos e mercenários.

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