Artigo escrito por mim sobre a 4ª Pirâmide do Egipto, a legendária e carismática Fifi Abdou há anos atrás (quando ainda era verdinha mas já sabia o que dizia!:)))))
Aqui transcrito do website "Central do Brasil" (
www.centraldancadoventre.blogspot.com.br)
1. Contextualização do fenômeno
“Fifi Abdou”:
Os mitos e os ídolos fazem parte da história e do cotidiano da generalidade dos países. Parece existir uma necessidade de alguém ou algum ideal que personifique o sobre humano e que faça sonhar, que se pareça com aquilo que a maioria das pessoas imagina ser Deus, que faça acreditar no impossível e que dê ou reforce a identidade de um país e a cultura de um povo.
A esses mitos atribuem-se qualidades extraordinárias colocando-os num plano que é semi-divino, inatingível. Quando esses mitos se esforçam por manter essa imagem quase divina e, ao mesmo tempo, se aproximam do seu povo com calor e simplicidade, a adoração triplica pois passa a haver a sensação de comunhão com essa centelha “divina” que paira sobre o comum dos mortais!
É Em países chamados de “terceiro mundo” em que a pobreza e os problemas sociais, políticos e económicos se reflectem muito directamente na mentalidade e na cultura do seu povo, estes mitos ganham uma importância ainda maior.
É o caso do Egipto, um país de História e Cultura indubitavelmente excepcional mas com um índice de pobreza assustador e uma estratificação social em que existe uma grande maioria de pessoas paupérrimas e uma minoria de indivíduos vivendo no fausto absoluto (e absoleto!!).
No Egipto, à semelhança de outros países árabes, os heróis e os ídolos estão intrinsecamente relacionados com o sistema político vigente.
A Dança e a Música – alvo dilecto do fundamentalismo religioso – ondulam e moldam-se conforme as regras que um governante coloca na ordem do dia. Se existe uma nova restrição legal, as bailarinas têm de usar uma rede que lhes cobre o abdómen ( apesar do abdómen continuar a ser totalmente visível!!), se se desvaloriza a cultura popular egípcia, as bailarinas correm em busca de trajes e sapatos agulha (!!!!) ao estilo ocidental, de forma a fugirem ao estereótipo considerado “tacanho” da típica bailarina egípcia “baladi” ( “baladi” remete à identificação com a nossa terra natal), se ressurgem movimentos religiosos fundamentalistas passa a existir uma crise na área do espectáculo e por aí adiante.
O que é curioso é que tendemos a identificar o fundamentalismo religioso com a Religião Islâmica quando ele existe em todas as religiões, embora com menos projecção e talvez mais subrepticiamente. Tive um exemplo disso quando fui – quase!!!- contratada para dançar num casamento católico. A ideia da mãe do noivo – que me contactou – era lindíssima e eu fiquei entusiasmada e muito feliz pela abertura e luz da cabeça daquela senhora. Ela pretendia que eu fizesse uma coreografia de Dança Oriental que fosse a recepção aos noivos quando eles viessem em direcção ao altar da Igreja.
Quem conhece a história da Dança do Oriente sabe que a sua origem se identifica com a Fertilidade e a Prosperidade, ela nasce simbolicamente da Criação do Universo daí fazer todo o sentido apresentá-la em ocasiões como o Casamento.
No mundo árabe, é tradicional e imprescindível que haja Dança Oriental em todos os Casamentos que se prezem.
Apesar da ideia da senhora que tentava contratar-me - apresentar esta dança mágica que desejasse toda a felicidade e prosperidade aos noivos - houve imensos entraves da parte da família da noiva e, claro está, do padre que iria celebrar a missa. Recordo-me que já tinha planeado um traje branco e um véu de seda natural que parece asas de anjo. Lembro-me que já tinha pensado numa coreografia com música sufi em que a flauta faria poesia sonora e o sentimento de comunhão e Amor seria partilhado e, no fim, não foi permitido pela igreja em questão a apresentação da dança pois poderia ser “ofensivo” (foi este o termo que o Sr. Padre utilizou) para os convidados e para ele mesmo.
Isto sucedeu numa Igreja católica e, para mim foi a primeira experiência de ter sido alvo do fundamentalismo religioso. Poderia tecer várias considerações acerca da perversão, da falta de harmonia e paz que muitos “sacerdotes” de Deus carregam consigo, a distorção e desequilíbrio a que a maioria dos cérebros humanos está sujeita, etc, mas não é esse o âmbito deste texto.
Embora o tema deste artigo não fosse o fundamentalismo religioso, este é essencial para compreender-se a vivência da Dança e da Música pelo ser humano e para compreender a personagem que me levou a escrever-vos: Fifi Abdou.
Fifi Abdou é a bailarina/actriz mais conhecida em todo o mundo árabe.
À semelhança do Om Kolthoum – filha de um íman que acumulava a tarefa de “muezzin” ( pessoa responsável pela chamada para a oração) - ela congrega e reúne os países árabes e é uma bandeira quando se fala da Cultura egípcia contemporânea. Om Kolthoum foi o expoente máximo daquilo a que se pode chamar um ídolo. Ela uniu os povos como ninguém em torno da sua música que apelava ao Nacionalismo ( com óbvias ligações ao Governo da sua época) e ao orgulho naquilo que era tipicamente árabe e, mais concretamente, egípcio. Como a música sempre gozou de mais fácil aceitação entre as camadas do Governo e da Igreja , Om Kolthoum teve um papel privilegiado e foi apoiada pelo sistema político da sua altura.
Esta cantora ( e actriz) nasceu no início do século XX ( por volta de 1904) e a sua carreira floresceu numa altura em que a descolonização britânica ainda ecoava e confundia as cabeças egípcias.
Assim sendo, ela veio reafirmar o valor e a grandiosidade da sua cultura e o público respondeu-lhe com uma devoção que ainda hoje prevalece.
Na sequência da tomada de consciência e da revalorização da Cultura Egípcia, surgiram outras gerações de artistas como a “geração de ouro” (anos 30/40/50) da Dança Oriental representada por bailarinas como Beba Aizzedin, Huriya Muhamad, Naima Akef, Tahya Carioca e Samya Gamal.
Badia Masabny – responsável por muitas das transformações e adaptações da Dança Oriental clássica ao estilo que conhecemos hoje como estilo de “cabaret”, mais adaptado às exigências do âmbito do espectáculo – fez despoletar a primeira geração de bailarinas reconhecidas pelo seu valor artístico e a sua casa de espectáculos “Casino Opera” foi a casa de onde saíram as grandes estrelas das décadas de 40 e 50.
Nesta altura, músicos como Farid Al-Atrash (cujo “amor impossível” por Samia Gamal é sobejamente conhecido), Mohamed Abdul Wahab e Muhammad Fawzi (entre outros) elevaram a música egípcia ao lugar onde ela pertencia e contribuíram para que o povo egípcio iniciasse o processo de reconhecimento e valorização de si próprio. À excepção de alguns músicos – como é o caso de Farid Al- Atrash –os artistas provinham de classes sociais muito baixas, o que aumentava o sentimento de identificação do povo em relação a estes artistas ( que se identificava com eles e, ao mesmo tempo, os admirava pela ascenção conseguida ) e dava aos próprios artistas a noção de comunicação e linguagem que o povo entende.
Vindo de meios muito pobres, eles sabiam o que o povo valorizava, qual a sua linguagem, os seus códigos, a sua forma de fazer humor e relativizar a pobreza e a seriedade da vida, o seu modo de ver o mundo. Daí a forma como chegavam até às pessoas.
Depois desta geração privilegiada em que a dança e a música egípcias foram introduzidas no mundo ocidental numa escala alargada ( nomeadamente através de filmes em Hollywood ) surgiram bailarinas cuja menção vou reduzir aos nomes de Souhair Zaki ( com quem tive a oportunidade de estudar e que muito me emocionou), Nagwa Fouad ( com quem também tive a oportunidade de estudar e que me surpreendeu pela sua simplicidade e humanidade ) e, finalmente, Fifi Abdou.
2. Fifi Abdou – o fenómeno!
Qualquer profissional da Dança Oriental conhece estas personalidades que abordei e, no entanto, apesar de todas as mudanças pelas quais o mundo está a passar e, especificamente o Egipto, não deixa de ser estranha a relação de amor-ódio que o Egipto tem com a sua dança clássica – que , no Ocidente, reduzimos a “Dança do Ventre” – sendo que o Folclore Egípcio goza de um outro estatuto e lugar no coração dos egípcios.
A Dança Oriental – em tudo o que ela tem de aparentemente contraditório e irresistível – faz parte da vida quotidiana de todos os egípcios mas a ignorância, o fundamentalismo religioso e político e também a falta de qualidade generalizada nas bailarinas que se apresentam em público, tendem a denegrir a imagem da dança oriental e criam uma relação ambígua em relação à mesma.
Fifi Abdou é uma das personagens que povoa o imaginário dos árabes e que desafia autoridades, mentalidades e barreiras culturais.
Quando comecei a estudar Dança Oriental – ainda muito longe de pensar que este seria o meu caminho de vida –o nome da Fifi Abdou foi o primeiro que ouvi e a ele vinham associadas muitas histórias, polémicas e um enorme encantamento.
Pertenço à geração mais jovem de bailarinas profissionais e, por isso, muitas das imagens que tenho são de registos em vídeo ( como é o caso dos filmes da Samya Gamal ou da Naima Akef, entre outros).Ainda tive o privilégio de estudar com a Souhair Zaki e com Nagwa Fouad mas estas bailarinas , apesar de ainda serem muito presentes na vida cultural egípcia, já não actuam nem estão em contacto permanente com o público.
Com mais de 50 anos, Fifi Abdou é a última das grandes bandeiras asteadas em prol da Dança Oriental. Dizem as más línguas que já era tempo de ela se retirar mas, depois de a ver ao vivo, discordo totalmente. A Dança Oriental é atípica em muitas coisas e a questão da idade é uma delas.
Esta é uma dança que se executa cada vez melhor com o passar dos anos, ao contrário de muitos géneros de dança cuja qualidade tende a declinar com o avançar da idade.
Enquanto o corpo, o espírito e a emoção funcionarem, a dança acontece e a magia da mesma aumenta com a experiência de vida.
Fifi Abdou criou uma carreira na Dança, no Cinema, na Televisão e no Teatro pois em todos estes meios a dança oriental é valorizada e comercialmente muito apelativa. Multidões – nas quais me incluo – acorrem ao teatro ou ao cinema não para ver a peça tal ou o filme y mas para poder sentir a presença e ver ao vivo o furacão – como lhe chamam – Fifi Abdou.
Esta bailarina é já uma lenda viva e as suas raízes populares tornaram-na adorada pelas camadas mais privilegiadas e pelos mais desfavorecidos. Tudo nela é nobre e orgulhoso e, ao mesmo tempo, simples e acessível. Desta mistura, nasce o mito.
Ela é também o expoente máximo da representação da Dança Oriental no mundo (não há bailarina que não a conheça, seja japonesa, marroquina ou alemã!!) e é alvo de inúmeras polémicas com as autoridades religiosas islâmicas pois desafia as normas e as restrições religiosas constantemente.
Num país em que a população é levada a agir irreflectidamente consuante os ditames de uma religião já de si desvirtuada ( muitas das imposições são feitas em nome da religião sem que determinadas normas estejam, de facto, relacionadas com a verdade do Corão ) , Fifi Abdou é também a pessoa que simboliza a libertação dessas amarras sem sentido.
Ela faz em cena aquilo que muitos árabes gostariam de fazer na sua vida. A sua atitude desafiadora e livre face aos tabus da sociedade árabe é, ao mesmo tempo, admirada, invejada e temida por muitos.
Daí ter sido alvo de perseguição de fundamentalismos e autoridades que, face ao seu poder actual como artista e interveniente activa na sociedade egípcia , em pouco a podem atingir.
À semelhança de outras bailarinas, Fifi Abdou sabe como circular nos corredores da política e do social egípcio e isso, juntamente com o seu indubitável valor comercial e artístico, tornam-na quase intocável.
3. A aventura de uma ida ao teatro!!!
Das muitas vezes que viajei para o Egipto nunca houve a oportunidade de ver Fifi Abdou ao vivo.
A impressão que tinha desta artista não era das melhores, devo confessar.
Tenho imagens de vídeos e relatos que dão apenas uma pálida e distorcida imagem daquilo que ela representa de facto.
Destas fontes que possuo, a imagem que me passava era de alguém muito esperto (não forçosamente inteligente, mas esperto!!) mas sem qualidade técnica ou artística.
Tinha a impressão que ela usava – à semelhança e muitas outras “bailarinas” muito menos bem sucedidas – do “flirt” com a audiência, das piadas rasteiras e de modos pouco femininos que impressionavam não só pelo inédito mas também pela pujança física ostentada. Por aqui se vê que a imagem que tinha não era a melhor!
No entanto, e apesar da minha ideia sobre ela não ser a melhor, vê-la é uma questão de cultura geral para alguém que trabalha nesta área.
Da minha pesquisa pessoal sobre os locais onde ela actuaria recebia respostas evasivas e quase sempre um “não sei se ela actuará hoje ou amanhã, também não sei se esta semana estará no Cairo, etc, etc, etc...”
Como achei que já não tinha muito tempo para ver com os meus próprios olhos a tal “lenda viva” de quem todos falavam e sobre a qual tanto se dizia e enaltecia, insisti na ideia de que tinha – MESMO – de vê-la actuar desse por onde desse.
Na minha última viagem ao Egipto –há uma semana atrás - pedi a um amigo que tentasse averiguar onde ela estaria a actuar e assim foi. Informou-me que ela actuava no Hotel de cinco ***** “Semiramis” mas que, uma vez mais, a actuação dela era incerta e tanto podia acontecer como não acontecer.
Reparei que havia cartazes espalhados pelo Cairo com uma boneca (mal) pintada que se assemelhava remotamente com a Fifi Abdou.
Perguntei do que se tratava e disseram-me que era o anúncio de uma peça de teatro na qual a Fifi Abdou era protagonista. Era exactamente o que eu queria ouvir e decidi que naquela mesma noite eu iria em busca dessa peça de teatro e mataria a minha curiosidade.
Desaconselharam-me a ir a esta peça por várias razões. Uma delas e a mais óbvia de todas é o facto de eu não entender nada do que os actores iriam dizer – entendo o mínimo de árabe e não falo senão umas poucas palavras que não dão para construir sequer uma frase! – e a peça tinha a duração de quatro horas e meia !!!!! Outra razão era a localização do teatro que se encontrava na “Broadway cairota” que é uma espécie de Parque Mayer em decadência dupla! Outra razão ainda era o preço do bilhete que era proibitivo até para um estrangeiro.
Mesmo assim, ninguém me demoveu da minha vontade e lá vou eu numa bela noite de Verão a caminho a 4ª Pirâmide do Egipto.
Como é hábito, a chegada ao teatro não poderia ser pacífica e linear e, portanto, apanhei um táxi cujo taxista não falava uma só palavra de inglês e que me disse saber perfeitamente onde era o teatro em questão (o nome do teatro era “Romance Theatre”).
Levou-me a um teatro e disse-me – em árabe – que os bilhetes estavam esgotados. Eu olhei incrédula para o cartaz gigantesco que estava na minha frente e vi que no anúncio da peça em questão estavam actores todos vestidos de bebés com chuchas na boca e caras de otários deliberadamente exageradas. Por um instante pensei em procurar a cara da Fifi Abdou no meio daquele “infantário” cénico mas não consegui imaginar a Fifi Abdou de fraldas e chucha na boca. Por mais que a minha imaginação voasse e percorresse o improvável, essa era uma imagem longínqua demais para ser realidade. Constatei que estava no teatro errado, claro!
O taxista estava mais perdido do que eu e levou-me até três teatros diferentes até que me subiram os calores – para além da temperatura já de si calorosa do Cairo em pleno Agosto – e peguei em mim com toda a irritação e respectivos suspiros enervados e lá fui “Broadway” adentro, sozinha, em busca da minha peça de teatro.
De papelinho na mão e uma multidão de egípcios a entrecruzarem-se na minha frente e atrás de mim, vi vendedores de pipocas, comida por todo o lado, fumo que saía não sei de onde, o caos que já é familiar a esta cidade!
Finalmente, vi um cartaz com a bendita senhora em pose sensual e lábios repenicados ao estilo Marilyn Monroe. Uma multidão chegava para ver esta peça de teatro e todos estranhavam a minha presença pois era a única estrangeira naquele local – à semelhança do que me acontece em praticamente todos os sítios onde vou quando estou no Egipto – e, ainda por cima, não falava árabe.
Os senhores da bilheteira ainda me perguntaram se eu sabia que aquela peça era toda falada em árabe. Eu respondi afirmativamente e sorri.
Fiz questão de estar na primeira fila da sala e pude comprovar como existe um espectáculo antes do início do espectáculo propriamente dito.
Assim que entrei na sala de teatro, esta foi literalmente invadida por vendedores de comida (refeições leves, aperitivos), vendedores de bebidas (batidos, sumos naturais, refrigerantes, água), vendedores de doces (com toda a espécie de doces ocidentais e chocolates duvidosos), vendedores de sandes variadas e fotógrafos que fazem negócio fotografando as famílias no teatro e com algumas das “estrelas” da peça de teatro como era o caso da Fifi Abdou. Estes fotógrafos acenavam com a máquina e pareciam besouros a sobrevoar as cabeças do público com nomes de actores e da atracção principal da noite.
A solenidade, o silêncio e a seriedade característicos das salas de teatro ocidentais em nada tem a ver com aquilo que pude viver naquela sala de teatro. Senti que aquela noite de teatro era apenas um prolongamento da noite em si sem a criação de um espaço à parte em que a vida pára e a arte começa. A vida e a arte numa só dimensão, num só espaço e num só tempo. Isto é tipicamente árabe!
Depois de meia hora – ou mais!!- de comidas e bebidas intermináveis, soaram três apitos que significavam o início da peça. A grande expectativa de todos era ver Fifi Abdou mas a sua entrada foi precedida por muitas outras entradas de actores que eram queridos do público – exceptuando-me a mim – e por situações cómicas que só aumentavam a expectativa. De cada vez que um actor entrava em cena, havia manifestações ruidosas e calorosas da parte do público.
Apesar de não entender 99% das falas dos actores, valeu-me a minha própria experiência e conhecimentos de actriz e consegui usufruir de muitos momentos hilariantes ao ponto de nem dar pelo tempo passar ( o que é difícil pois quatro horas e meia de peça não passam despercebidos!!!)
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Quando Fifi Abdou entrou – com a força e a segurança de um ciclone – arrebatou aplausos e atenções redobradas sobre o palco. Pude ver – além de uma bailarina - uma actriz e uma verdadeira artista com uma presença em palco, um carisma e um poder de comunicação com o público fora do normal. Ela não só contracenava com muita graça e desenvoltura como estabelecia um entendimento muito directo com o público, mesmo quando não se dirigia directamente a ele.
Apesar da sua idade, continua a ser um mulher belíssima e sabe usar essa beleza de forma pouco subtil mas despretensiosa.
A sua silhueta é tipicamente egípcia com as curvas exageradas e os quilos que no Ocidente seriam motivo de vergonha mas ela não só assumia a sua fisionomia e formas como se orgulhava disso e até brincava com a questão fazendo-nos sentir o bem que ela também se sente na sua própria pele.
Num dos números que apresentou com a orquestra que acompanhava a peça, Fifi chegou a prender a bagueta do violino numa das gordurinhas da barriga e da cintura. Fê-lo com graça, descontracção e arrancou gargalhadas bem dispostas de toda a gente.
A música esteve presente durante toda a peça mas foi criado um intervalo e depois um espaço só de dança, canto e música no qual pude perceber o porquê da idolatria em relação à Fifi Abdou.
Ela não possui, de facto, uma técnica apurada e diversificada e não parece preocupar-se com isso. Está no palco como se estivesse em casa, tal como o público que está na plateia e poderia estar na sala de estar das suas casas. Há um ambiente familiar impressionante que nos acomoda e acolhe com calor, simplicidade e nos torna todos numa só família.
Ela consegue – através da sua pessoa mais do que através da sua dança - reunir as pessoas e comungar de um só sentimento e de uma só sensação com elas.
Fez várias entradas com trajes diferentes em que a mini saia e os decotes estavam na ordem do dia (as exigências do “star system” egípcio não lhe passam despercebidas!) e bastava dar um passo na direcção da audiência para colher olhares esbugalhados e sorrisos francos e abertos.
Fazia questão de se aproximar das pessoas com segurança em si mesma e de coração aberto e não raras vezes parava de dançar para responder a um comentário dos músicos ou do público.
Enquanto dançava, vociferou com um dos músicos quando este não acompanhou o ritmo que ela pretendia e continuava a dançar apesar de conversar ocasionalmente com uma das cantoras.
Fez humor a partir de pequenas coisas e passou largos minutos a executar o seu famoso “shimmy” de ancas em que todo o seu corpo vibra de um modo descontraído e alargado, como uma planície montanhosa a ser levemente desestabilizada pelo sub solo.
A forma como esta artista se ama a si mesma e se valoriza transparece para todos os que a vêem. Ela assume cada gesto como se fosse o melhor e mais acertado do mundo porque é dela, porque foi sentido e transmitido por ela, é a sua forma de chegar até nós. É uma força da natureza assumida, sem medo e com uma aparente agressividade que não esconde uma mulher amorosa e generosa.
Pude constatar como demonstrou a sua força física ( importante para se impor num mundo muito masculino e machista como é a sociedade egípcia ) num número de”Al Assaya” que apresentou como se fosse um homem.A sua expressão tornou-se dura e seca como a expressão dos homens do Alto Egipto quando, solenemente, lutam pela sua honra em sessões de “tahtib” acompanhadas por música.
A sua expressão alternava-se consoante a reacção do público e chegou a “martirizar” um pobre cavalheiro que estava na primeira fila e que se atreveu a não bater palmas na primeira vez que ela entrou em cena para dançar!!! A partir deste episódio, ela formulou piadas e dirigiu-se a ele várias vezes ao longo do espectáculo deixando toda a gente com o riso pendurado e solto.
Como as suas netas estavam na primeira fila, ela dirigiu-se a elas muitas vezes e beijou-as, olhou para elas como se não estivesse a decorrer um espectáculo.
Houve sempre nela uma mistura de sentido de espectáculo – alguém que sabe estar em cena e a domina como ninguém – e uma sensação de estar em casa, descontraidamente, sem ninguém a olhar para ela.
Vi na Fifi Abdou o protótipo da Grande Mãe babilónica que cuidava e destruía os seus filhos conforme os seus caprichos.
Nessa figura maternal cabia tudo, a mulher sensual e poderosa que assume a sua identidade e a sua sensualidade com afinco e a mãe compreensiva mas também repreensiva que tudo abarca, tudo cria e tudo destrói, que tudo colhe e que tudo espalha à sua volta. Ela pulsava a vida e transmitia-o ao público.
O arquétipo de todas as facetas que a Mulher pode ter estava ali, à minha frente, e eu entendi o porquê de ela se ter tornado a figura que é hoje.
Fez também a dança com a “shisha” que é sobejamente conhecida pelos amantes da dança oriental e pelos egípcios em geral. Esta dança consiste simplesmente em circular pela audiência com uma “shisha” ( também conhecida por “narguilé”, uma espécie de pipa de água pela qual se fuma tabaco com vários sabores exóticos) dançando.
Existe um rapaz que a segue segurando a “shisha” e ela fuma-a de formas diferentes ( por uma narina apenas, pelas duas, etc) coordenando esta pequena encenação com movimentos simples de ombros ou com “shimmy” de ancas. A graça e o desafio está no facto do hábito de fumar “shisha” ser masculino e na aproximação física da bailarina e do seu olhar em relação ao público.
É impossível não nos rendermos à humanidade e coração grande que se desprendem daquela mulher.
Pude sentir como ela gosta verdadeiramente das pessoas e o mostra através do olhar, dos gestos, da aproximação, da descontração com que está rodeada de pessoas.
Sem nunca perder a sua presença imponente, ela consegue encantar e derreter os corações de todos pois o coração dela também está aceso quando dança e partilha o espectáculo com o público.
Ela destrói as barreiras entre a cena e a audiência e fá-lo com uma dignidade e um sentido de humor notáveis.
Ao vê-la, não tive oportunidade de colher técnicas e passos de dança especiais mas tive oportunidade de ver uma grande artista que me deixou com lágrimas nos olhos e me emocionou pela atmosfera de amor e alegria que conseguiu criar numa sala de teatro.
Quando passou na minha frente- vendo que era única estrangeira na sala – pegou-me na mão e apertou-a com um sorriso de agradecimento que não esquecerei.
Todo o espectáculo foi magnífico e as horas não se sentiram.
Quando saí do teatro, o meu coração estava cheio de alegria e transbordava de gozo pela vida e não exagero quando o digo.
Esta é a missão da dança oriental. Talvez esta seja a missão da Arte.
Joana Saahirah
Publicado originalmente em www.joanabellydance.com