Tuesday, January 5, 2010

Cairo, dia 30 de Dezembro, 2009

“Incongruências”

Viver no Egipto sem ensandecer é conseguir conjugar os nossos valores e forma de ver o mundo com outros que nos parecem ilógicos e baseados em ignorância e pequenez mental e espiritual.
Admito, frequentemente, que não compreendo a realidade que me rodeia. Não me adaptei totalmente ao meio que me rodeia e ainda bem que assim é. Se me tivesse adaptado àquilo e às pessoas que estão à minha volta, já me tinha transformado numa verdadeira “cabra” (para sermos exactos e não me refiro às carinhas mimosas que pastam nas montanhas transmontanas do nosso Portugal), já teria perdido a consciência entre o certo e o errado e já teria eliminado a minha capacidade de amar verdadeiramente e confiar nas pessoas.

Quem vive por cá, tem de habituar-se às várias incongruências do dia-a-dia...

1. Censuro a minha assistente porque se veste para ir para o trabalho como se fosse vender a pernoca para um cabaret de quinta categoria. Pela “minha” lógica, eu – a estrangeira, a bailarina, a depravada prostituta – deveria ser orientada pela egípcia – muçulmana – mãe de família respeitável – costureira e afins domésticos na minha conduta e forma de vestir.
O que acontece é o contrário. Eu, a bailarina toda cobertinha e incomodada com o assédio dos homens e ela, a senhora mãe de família e avental, seduzindo e deixando-se seduzir pelos homens que por ela passem, vestindo coisitas fantásticas que eu, do alto ou do baixo do meu bom gosto, defino como “roupa de engate no Cais do Sodré”.
Acrescento que esta senhora é uma “boa senhora” e a artista é uma “boa artista” (obrigada, Herman José, pela infinita inspiração). Apenas comento a aparente contradição da situação. Não me cabe a mim julgar os ímpetos de cada um.

2. Ensaio um novo tema com orquestra e bailarinos.
Na história/conceito deste tema, entra um homem meio bêbedo interpretado por um dos meus bailarinos. Um dos músicos tem uma ideia brilhante:
Porque é que o bêbedo não entra a cambalear envergando duas garrafas de whisky nas mãos?!
Ah...iluminada ideia.
Todos acenam e dizem que sim, sim, sim...as garrafas são uma ideia fantástica. A minha assistente oferece-se para cenografar as garrafas (uma com vinho e outra com whisky). Informa-me, displicente, que o vinho pode ser “carcadé” (uma espécie de infusão vermelha que se parece ao vinho) e que o whisky pode ser infusão de aniz.
Eu olho à minha volta e penso para mim mesma:
“Que absurdo! Um grupo de muçulmanos que condena e aponta o dedo a quem quer que consuma bebidas alcoólicas mostra-se, num segundo, entusiasmadíssimo com a ideia de incluír garrafas de vinho/whisky em palco.”
- Mas este é um país muçulmano, caso vocês se tenham esquecido.
Parece-me ofensivo para as minhas audiências egípcias e árabes incluir adereços completamente dispensáveis que representam algo condenado pelo Islão. – Digo eu, indignada pela insensibilidade dos meus compatriotas da loucura.
- Mas isto é diferente. Isto é um espectáculo de Dança. – Respondem eles em uníssona concordância.
- Ah, querem dizer...como a dança já é “haram”, acrescentar umas garrafitas aqui e ali não sairá do contexto...
-Exacto.

Bem, é aqui que entra a percentagem mínima de tolerância que eu tenho pela estupidez alheia. Comparar a Dança – ou o seu grau de ilegetimidade segundo o Islão – às bebidas alcoólicas é como colocar tudo no mesmo saco. Segundo os egípcios e o Islão mais estrito, a DANÇA, a MÚSICA, O CINEMA, A LITERATURA E TODAS AS ARTES SÃO EQUIVALENTE ÀS BEBIDAS ALCOÓLICAS E ÀS DROGAS no que diz respeito ao seu poder demoníaco sobre os seres humanos.

Evadir-se com uma bela música ou dançando não é, certamente, o mesmo que evadir-se apanhando uma valente bebedeira (ou estarei enganda?!).
Ora bem, para encurtar o drama da tasca...eu que até nem sou muçulmana e sou bailarina (terrível, terrível!) impedi que um acto de desrespeito ao Islão fosse cometido no meu palco e a minha equipa composta por muçulmanos estava prontinha para dar as Boas Vindas às garrafas e tascas de todo o Universo.

Ahhhh....AdoRO o Egipto!

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