Quando a vontade de dancar desaparece...
Este post é dedicado a uma linda menina que me enviou um email inquirindo sobre o assunto. Como ela sabem de quem se trata e como respeito a privacidade de quem me escreve nesse ambito íntimo, nao precisarei de mencionar nomes.
A mensagem passará para quem dela precisar. A quem o barrete servir.
Comecando por mim.
Será que já vos aconteceu, a voces que dancam amadora ou profissionalmente, sentirem um súbito desinteresse pela danca?
Que fazer e pensar quando, de repente, nao nos apetece dancar mais, mexer um dedo, escutar música, seguir aprendendo?
Que se passa quando o encanto pela Danca Oriental se transforma em desinteresse e até repúdio?!
Como em tudo, as luzes que poderei atirar sobre o assunto sao baseadas na minha experiencia pessoal/profissional. O que se le nos livros interessa para nos alimentar a mente e a imaginacao mas a SABEDORIA que possamos ter chega apenas da VIDA vivida e assim poderei dizer o seguinte:
Existe uma diferenca FULCRAL (gostaram do "FULCRAL"?) entre a bailarina que danca profissionalmente e a que possui esta danca como um "hobby" que alegra a sua vida sem dela depender para pagar as contas de casa, luz, água, comida, transporte e todas essas coisas comesinhas que, infelizmente, fazem parte da vida adulta de quem se sustenta a si próprio, Claro que nada disto tem poesia nos poros. Nada disto tem a ver com arte, esta realidade quotidiana que une artistas e empregados das Financas e senhoras das limpezas. E, no entanto, tem tudo a ver. Está tudo mais que ligado pois a ARTE reflecte a vida, até mesmo na sua dimensao mais, aparentemente, desinteressante e pequenina.
Como bailarina profissional, eu nunca me pude dar ao luxo de permitir que um bloqueio interno me impeca de DANCAR. Trabalhando no Cairo nestes últimos anos e seguindo um sistema maquinal /brutal de trabalho que me obriga a dancar diariamente, faca chuva ou faca sol, já tive momentos de recusa TOTAL face a Danca. Momentos em que só me apetecia estar fechada na minha cave emocional de silencio e mandar os espectáculos para as urtigas.
Momentos de tristezas, stress de variadas origens, fragilidade física e de toda a ordem, dramas e tragi-comédias de todas as cores e uma assustadora variedade de situacoes extremas durante as quais a DANCA era a última coisa que eu tinha em mente e, no entanto, tenho responsabilidades a cumprir. Sempre que esse anseio de imobilidade e silencio me atacou, eu pensei na minha orquestra que depende de mim para sustentar a sua família, pensei no contrato que tenho a cumprir com a empresa que me contratou e no público que me vem ver actuar esperando o melhor de mim e completamente alheio as razoes pelas quais nao me apetece dancar e só quero estar quieta, no meu canto.
Nessas situacoes de desencanto e exaustao em que já nenhuma música e nenhum movimento me parecem apetecíveis, lembro que tenho de trabalhar para me sustentar. Simples quanto isso. Se nao danco, nao ganho dinheiro para me sustentar financeiramente e isso, por mais básico que seja, acaba por ser um motor incrível para que qualquer drama se ultrapasse e se esmague até ficar reduzido a pó. Dizem os nossos portugueses que a necessidade é filha do engenho ou algo que o valha! E como existe tanto de verdade nesse ditado...
Quantas vezes senti que a Danca havia morrido em mim e que todas as lutas e sacrifícios travados diariamente pela defesa da ARTE que outros veem como "STREAP TEASE" eram inúteis. Quantas vozes ecoaram na minha mente gritando, aflitas, que nada disto vale a pena e que sou apenas uma patética sonhadora que ACREDITA que uma pessoa apenas pode ajudar a MUDAR algo no mundo.
Quantas vezes tive de dancar contrariada e sem inspiracao nenhuma, rezando para que a noite terminasse rapidamente e eu pudesse dormir, dormir, dormir...
Quantas vezes fiz outras pessoas felizes através da minha Danca e, por dentro, me sentia morta. Anulada. Vazia.? Quantas vezes?
Mas..."the show must go on"... e sempre segui em frente.
O maravilhoso desta ausencia de escolha - dancar ou nao dancar?!- reside na alquimia emocional que se transporta do palco para a vida. Depois de uma noite em que me arrastara para o palco sem a mínima vontade de dancar, senti novamente o FOGO inicial que me fez apaixonar por esta danca e que me fez correr meio mundo para conhece-la em profunidade.
Quando aceitamos ir ao fundo da nossa dor e desamparo, descobrimos novamente o AMOR e o FOGO dentro de nós. E quando isso acontece em palco, multiplica-se por muita gente que nos ve e assim participa, sem sabe-lo, nesse processo alquímico que transforma pedras em diamantes.
Relativamente a quem danca de forma amadora a situacao é diferente. O amador é, como a palavra indica, aquele que AMA. Simplesmente, ama. E isso é também um privilégio.O amador nao precisa de dancar para pagar contas ao final do mes. Simplesmente, AMA o que faz.
E aqui o desencanto pode ser encarado de forma diferente e mais leve.
Todos crescemos e mudamos de opiniao, interesses, exigencias. Quem estuda Danca Oriental vai sempre encontrar momentos de estagnacao e desencanto porque esta é uma danca que cresce connosco, enquanto seres humanos, e nela se reflectirá tudo mas TUDO o que vai dentro de nós.
Quando um bloqueio amador acontece a quem danca, aquele que AMA pode respeitar esse bloqueio e desinteresse e dar-se tempo para entender o porque do VAZIO interior que leva a tal repúdio.
Existe também o lado prático da questao. A maioria dos "professores" existentes nesta área nao tem a menor ideia do que está a ensinar e, por isso, quem com eles estuda e possui alguma inteligencia, chega a um ponto em que pensa: "E depois??? Nao há mais nada senao isto?"
Na impossibilidade de expandir-se e crescer criativamente, quem danca acaba por se desinteressar e achar que nada daquilo vale a pena.
Nestes casos, os mais comuns, eu digo: PAREM. E busquem inspiracao noutros lugares, com outros professores, outros artistas, outras áreas da Danca. Vejam filmes, vao até a praia e observem as cegonhas, VIVAM!
A DANCA ORIENTAL é mais antiga que nós e reside dentro de nós, num sítio sagrado alheio a todos os bloqueios e "professores" incompetentes. No final da história, tanto amadores como professores ensinam-se a si mesmos, a partir de certa altura.
Na escalada desta montanha, chega um momento em que o único professor que nos estimulará é a VIDA. E, quando entendermos isso, já nao esperaremos que algo EXTERIOR nos reacenda a chama da Danca Oriental mas lancaremos o ultimato, o desafio MAIOR a nós próprios: Que posso eu trazer a esta DANCA de MEU?
E já nao:
"Que pode esta dancar trazer-me a mim?"
A batata quente passa para as nossas maos e o talento que, eventualmente, tenhamos desabrocha ou nao. Risco de VIVER! "You never know..."
Já nao esperaremos que outros nos estimulem mas descobrimos que tanto da Danca Oriental passa por sermos nós a estimularmo-nos a nós próprios e aos outros com aquilo que de único podemos OFERECER ao mundo.
E da ausencia nasce a ABUNDACIA. De dentro para fora. De nós para o mundo.
O movimento inverte-se e, quando menos esperamos, estamos incendiados uma vez mais e tudo BRILHA dentro e fora de nós. Uma vez mais.
Sempre.
Eternamente.
Como sempre brilhou ao longo dos tempos de que nao temos memória.