Tuesday, February 19, 2013

Eça de Queiroz e as "Ghawazi"

  
 
Aprender sempre me pareceu mais do que estar receptivo aos ensinamentos de um professor "oficial". Seja qual seja o assunto que estudamos, o truque está em ser CURIOSO (a ausência de curiosidade assusta-me: parece-me bizarra) e ter capacidade de RELACIONAR pessoas, informações, acontecimentos, pecinhas de puzzle às quais - normalmente - ninguém atribui qualquer correspondência. Aprender é trabalho de colagem, patchwork, coisa de criança Sherlock Holmes que segue pistas e se deleita em cair no caminho para a Arca do Tesouro.
 
Quando insisto em despertar as bailarinas/os que estudam comigo para a necessidade de abrirem as suas mentes, corpos, corações e almas a muito mais do que apenas um passo aqui e um movimento acolá sou - ainda - recebida com alguma estranheza mas tenho esperança que a situação mudará.
 
Saber de Dança Oriental egípcia sem saber de religião muçulmana parece-me pouco viável; saber de Dança Oriental egípcia sem saber de tradições, política, economia, História, condição da Mulher ao longo dos tempos e muitas outras ramificações que brotam dos fertéis vales do Nilo parece-me absurdo.

 Se dá trabalho estudar?! Claro que dá. Ter a ilusão (tão eficazmente vendida por muitos "professores") que aprender a dançar se resume a memorizar umas coreografias giras é apelativo, acessível, confortável. Mas APRENDER é MESMO sair das nossas áreas de conforto e é nesse precipício que eu me atiro e que atiro a quem estuda comigo por saber que é a partir dele que poderemos VOAR.
 
Assim sendo, aqui fica mais uma peça de puzzle que deverão saborear e ligar como vos aprouver: excertos do magnífico livro "Egipto - notas de viagem" de Eça de Queiroz (escrito no século XIX mas mais actual do que nunca).
Leio e releio Eça e recordo porque me orgulho tanto de ter nascido em Portugal (terra de grandes poetas, escritores, músicos, místicos, sonhadores, aventureiros, amantes, guerreiros e almas marítimas).
Aqui fica para saborearem, questionarem e comentarem:
 
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" O Egipto é um país de passagem. Tudo ali passa, tudo ali descansa, tudo ali repousa. É o caminho da Índia. É o caminho da Pérsia. É o centro onde acodem todos os povos da África Oriental. É o escoadouro das populações ambulantes do Mediterrâneo e do Levante. Tudo para ali emigra, até os pássaros, porque tudo o que tem asas , quando nos nossos climas começa o Inverno, foge para o velho Egipto!"
 
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(Comentário relativo a uma visita ao "hammam"):
 
"Então veio o café e o sherbet gelado, acenderam-se os chibucks, e, estendidos, prostrados, lado a lado, com o tubo do narguilêh na boca, os olhos no vago, um leve rumor de água nos ouvidos, o cérebro vazio de ideias e cheio de sonhos, abismámo-nos longo tempo naquele doce enlevo, no kief - no divino, mole, voluptuoso, inerte, pacífico kief!
A consciência leva tempo a renascer, perdida naquela sonolência."
 
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(Comentário feito em relação às "Ghawazi" quando vistas no seu contexto mais amado: entre os seus, em festas "baladi", de egípcios para egípcios e não para os costumeiros clientes estrangeiros que não as entendiam e que nelas insistiam em procurar a eterna prostituta-deusa do sexo):
 
"Aí, as Ghawazis, cercadas pelo povo, aplaudidas, animadas pelo olhar excitado dos homens, sentindo-se compreendidas, achando-se no seu meio natural, adquirem a fé, o instinto genial da graça no movimento, da beleza na atitude. Sempre que as vi dançar em festas populares, senti-me dominado por aquele baile misterioso, quase lúgubre, de uma sensualidade tão grave que mais parece um culto do que um espectáculo."
 
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(Ainda a propósito de ver as "Ghawazi" dançar):
 
"No entanto todo o baile é tão grave, tão largo, tão silencioso, tão misterioso, que lembra um rito sagrado. Aquelas danças vêm certamente de um velho culto lascivo da Assíria.  Celebram o mistério da voluptuosidade: não há ali a expressão violenta do desejo; não se foge, não se provoca, não se irrita, não se sucumbe. Não há acção naquelas danças: figuram apenas a mulher, o ser animal tomado de amor. É limitado e é profundo. A acção está toda concentrada no corpo. É o cântico da carne exaltada.
Nada de grotesco, de obscuro ou de baixo. A sensualidade, ali, é poética, é idealizada, e não há espectáculo mais belo nem mais estranho do que a visão daquelas dançarinas, resplandescendo fantasticamente ao clarão dos archotes, com os seus vestidos vermelhos reluzindo em reflexos acetinados, todas cobertas de sequins de ouro, movendo-se na celebração lasciva e sacerdotal das suas danças, entre a roda dos turbantes apinhados, alumiados de brancuras de luar."

 
Fifi Abdou - uma das míticas bailarinas do Egipto.

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