Belezas quotidianas (do Cairo) ou a arte de apanhar borboletas com os olhos.
Viver no Cairo é um exercício especial a muitos níveis.
Jogo de cintura necessário para contornar muitos obstáculos e incompreensoes e, acima de tudo, uma avaliacao contínua da nossa capacidade de encontrar o BELO no meio da mais devastadora sujidade.
Se os meus ouvidos sao radares atentos a todos os sons que me inspiram, por razoes que nem sempre consigo ou quero definir, entao os meus olhos sao redes próprias para apanhar borboletas.
Cansada de muita fealdade a minha volta, os meus olhos estao famintos de coisas e pessoas bonitas, dessa beleza que se veste por dentro e transpira pelos cabelos e pelo sorriso.
Nao admira que, sempre procurando, eu acabe por achar aquilo de que tenho fome:
1. Primeiro dia de Ramadao. "Iftar" (pequeno-almoco, quebra do jejum) com uma amiga chegada e sua família.
Preparacao prévia de iguarias egípcias para serem partilhadas com a família da minha amiga.
Aquando da hora do "iftar", jaz um solencio sepulcral por toda a cidade do Cairo. Só se escuta o Corao e o tilintar de mesas e cadeiras espalhadas por toda a cidade para refeicoes gratuitas e comunitários para as quais todos sao bem-vindos.
2. Embora o assédio sexual nas ruas da cidade continue em forma como nunca (já desisti de pensar que, pelo menos no Ramadao, dessem descanso ao mulherio que se atreve a andar na rua...) existe um silencio e uma ternura internos em cada pessoa com que me cruzo.
Ainda que, superficialmente, o Ramadao atinge toda a gente. Assim quero eu crer.
3. Amigos e famílias visitam-se uns aos outros e muculmanos convidam amigos de outras religioes para se juntarem as suas celebracoes (como já aconteceu comigo variadíssimas vezes). Nao parece haver espaco para a escassez ou para a mesquinhez - para tudo terminado em "ez" - no Ramadao.
O verdadeiro significado do Islao vislumbra-se, ainda que velado e confuso, nesta altura do ano.
4. As pessoas pedem desculpa por ofensas causadas e cuidam, mais do que o normal, por nao dizer ou fazer nada que as fira a elas mesmas ou a outras pessoas. Esta regra nao se aplica a maioria dos que eu encontro mas a um nobre tipo de gente que nao se distingue por ser muculmano, embora o sejam, mas por serem "boa gente".
5. O silencio sentido por todo o país na hora do "iftar" possui algo de mágico. Nao o sei compreender nem delimitar. O que será este silencio melodioso que se escuta na hora em que o jejum dos muculmanos é quebrado?! Nao sei, nao quero saber. Quero apenas senti-lo. Isso basta-me.
6. Ver a cidade a reavivar-se, apesar das dificuldades de sempre e de um actual periodo pós-revolucionário que pesa sobre todos nós a todos os níveis.
A VIDA do Egipto e o sentido de sobrevivencia de seus habitantes e nativos prevalecem sobre as maiores calamidades. Há quem diga que isso se deve a fé que este povo tem em Deus, em Alá, em Além, no Profeta Mohamed e em todos os que vieram antes e depois dele.
Eu vejo, com os meus olhos famintos de beleza, que se trata apenas de fé na VIDA e na certeza de que ela é feita de mortes e renascimentos.
E assim vejo, maravilhada, e compreendo o meu Ramadao pessoal.
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