Tuesday, October 9, 2012

Dançar "à egípcia": o que é?

Nestes últimos anos de vida e trabalho no Cairo tive o privilégio de conquistar aquelas que ainda são - para mim - as melhores audiências do mundo para Dança Oriental : os egípcios. 

Não obstante os preconceitos e a relação de amor-ódio que estes possuem com a sua própria música e dança, os egípcios carregam nos genes, nos ouvidos e no coração a semente original que deu origem a esta ARTE e é através dela que RE-conhecem uma BAILARINA talentosa, uma ARTISTA ou uma mera principiante.

O elogio mais recorrente que recebi, desde o início da minha carreira no Cairo (há quase oito anos atrás) foi: 
"ela dança melhor do que as egípcias " ou "ela dança mais à egípcia do que as egípcias". 


Numa primeira instância, não entendia o porquê destes comentários recorrentes pois nunca fizera nada - conscientemente- que se aproximasse à forma como as bailarinas/mulheres egípcias dançam. Sempre segui o meu caminho, aprendi como pude de todas as fontes que a minha Consciência me dizia serem interessantes e jamais almejei imitar quem quer que fosse. Creio até que grande parte do meu sucesso no Cairo se deve a isso mesmo: nunca tentei copiar quem fosse; sempre fui eu mesma, fiel ao meu coração e à forma única como só eu sinto a música e a transformo em dança. 

Com o tempo, a experiência e a observação diárias de espectáculos no Cairo, ano após ano, comecei a entender o que tal comentário queria dizer e a partir daí esmiuçar aquilo que de MELHOR absorvi da forma como os EGÍPCIOS (bailarinos profissionais e espontâneos/amadores) dançam. 


*
Eis uma pequena lista do que podemos aprender com os EGÍPCIOS 
(aplicável à Dança e à Vida):


*

1. Sermos nós mesmos. 
Nenhuma cópia - por melhor que seja - poderá equivaler ou suplantar o VALOR e PODER de alguém que se descobriu e se assume, tal como é: na Dança e na Vida. 
Vêm-se pelo mundo imensos clones desta e daquela bailarina (e há professores que fazem questão em alimentar essa fábrica de clones) mas as RARAS bailarinas que constroem carreiras artisticamente interessantes, sólidas e longas são aquelas que SOUBERAM TIRAR PARTIDO DAQUILO QUE SÃO E DA SUA FORMA ORIGINAL E ÚNICA de abordar a música e dança orientais.


2. Respirar
Sim- parece simples, não é? RESPIRAR, simplesmente. Como ocidentais, temos a mania da produtividade, da correria e da acção constante implantada nas veias. Treinamos o corpo como utensílio que executa tarefas, sem senti-las. 
Os egípcios tomam o seu tempo APENAS para RESPIRAR e nessa aparente passividade acontecem milagres essenciais à vida e à dança:

À respiração vem associada a PAUSA, o SILÊNCIO, o ESPAÇO para SENTIR, RECEBER o ar, a energia e música em nós; TEMPO DE REACÇÃO ao que essa música nos transmite e um estado de RELAXAMENTO que é próprio da postura física, mentalidade e dança egípcias. 


3. Retirar PRAZER das mais mínimas coisas: como caminhar, espreguiçarmo-nos, passarmos o peso do corpo de uma perna para a outra, sentirmos uma rajada de vento acariciando-nos a pele, etc. 
Os egípcios são orientados para o prazer - embora ele lhes seja negado, fora da Instituição do Casamento , por motivos religiosos. Quão bem sabe saborear uma chávena de chá ou fumar uma "shisha" sem pressa, apenas degustando o momento? Quão bem sabe balançar o corpo, como faria uma criança, ao som de uma melodia que anda perdida pelo ar. Quão bem sabe mexer no próprio cabelo ou decansar a mão na nossa anca...a lista de pequenos prazeres - dentro e fora de nós - é infinita. Quando aplicada à Dança, a capacidade de sentir prazer nos  detalhes amplia-se e REVELA-SE: SENSUALIDADE pura. 


4. Não correr, eliminar a sede de FAZER, FAZER, FAZER.
Os egípcios são amantes do ócio, de ver passar o tempo, de descanso, diversões e celebração. Não são um povo orientado para a PRODUTIVIDADE, como é o caso dos ocidentais. Por essa razão, a dança egípcia tem o seu ritmo e balanço específicos, sem pressa, pressão, ânsia de provar que se sabe, pode, quer fazer algo extraordinário. A grande chave da SIMPLICIDADE e da ECONOMIA de movimentos resulta numa linguagem relaxada (não desleixada), receptiva, amorosa e com espaço para o silêncio, a pausa, o SENTIR.

5. "Il laaba" - o jogo. Os egípcios e sua dança estão impregnados de sentido de humor. Quem se leva demasiado a sério acaba por passar por aborrecida e fora do contexto. A dança egípcia, baseada na improvisação, tem muito de riso, jogo, insinuação, brincadeira, criatividade livre de criança. Quanto mais nos permitirmos dançar nessa arena criativa de "infância" mais surpresas teremos (novos movimentos que não sabemos de onde saem, sensações inesperadas, interacção original com músicos e audiência que origina descobertas sem fim).

6. As bailarinas egípcias não pretendem IMPRESSIONAR a sua audiência
 (embora isso esteja a mudar - consequência da sua exposição massiva a audiências ocidentais com níveis de exigência e critérios de julgamento artístico distintos dos critérios dos egípcios).
 SENTIR e TER ALEGRIA no que se faz e não procurar AGRADAR a gregos e a troianos; esta qualidade pode passar por arrogância mas não o é, forçosamente. 
Quando centro a minha intenção em AGRADAR à minha audiência e IMPRESSIONÁ-LA com a minha excelente técnica-virtuosismo, é a minha MENTE quem comanda a DANÇA. Ora a Dança Oriental é matéria de CORAÇÃO, mais do que de mente. 
Se, por outro lado, centrar a minha intenção em SENTIR a música e COMUNICAR - honestamente - com a minha audiência, a DANÇA ganhará vida e MAGIA porque nascerá do CORAÇÃO (porta de todas as estrelas).


7. Temperatura. 
Eis uma daquelas coisas que é difícil ensinar. A Dança Oriental é QUENTE (tem uma temperatura alta - quase febril), tal como o coração - supostamente! - dos egípcios.
 Que quero dizer com isto? Existem culturas - como a egípcia, árabe, latina- cujo temperamento, na generalidade, é mais fogoso, impetuoso, sensual, apaixonado. Claro que este é um preconceito como outro qualquer mas é algo que observo com bastante frequência.

Países do norte da Europa, por exemplo, cuja sociedade, mentalidade e cultura os empurra para uma VELOCIDADE e RACIONALIDADE extremas e para um estilo de vida que privilegia o lado material-prático da vida terão mais dificuldade em DAR CALOR à dança do que povos, como o egípcio, para os quais as emoções, o ócio e os sentidos estão sempre à flor da pele.

Costumo dizer a alunos de todo o mundo: a dança egípcia precisa de CALOR; TEMPERATURA ALTA - também conhecidas por SENSUALIDADE que não se explica nem depende da roupa que se usa, das formas do corpo ou do grau de exposição do mesmo.
ABRIR o CORAÇÃO: essencial para quem pratica esta Arte.



8. Organicidade. 
Os egípcios recordam - embora cada vez menos - que a Dança Oriental é a mãe de todas as danças. Por norma, relembram-na na companhia de familiares que repetem os mesmos movimentos - geração após geração. Os ocidentais tendem a aprender os mesmos movimentos em escolas onde a ORGANICIDADE e o trabalho CRIATIVO e ESPONTÂNEO de reacção ao som não existe. Esta forma distinta de aprender a dançar fará toda a diferença na hora de IMPROVIZAR. Os egípcios tenderão a ser mais originais, loucos e criativos do que  os ocidentais precisamente porque aprenderam esta dança a brincar e num contexto familiar que estimulava a re-invenção de movimentos e formas de interpretar a música.


A esta lista poderia acrescentar-se outros detalhes - invisíveis à maioria dos praticantes de Dança Oriental - mas creio que os pontos referidos são os mais importantes.


No fundo, a intenção não é "dançar como um egípcio" ou "à egípcia" mas saber retirar o MELHOR da dança egípcia e do povo que lhes corresponde enquanto caminhamos na direcção de NÓS PRÓPRIOS.

2 comments:

  1. Parabéns Joana! Prefeito!
    Este texto vou ler e reler. Depois divulgar às alunas e amigas!
    Realmente, muito útil para a Dança e para a Vida!
    Beijos, Luz e Prosperidade sempre em teus caminhos!
    :-)

    ReplyDelete
  2. Maravilhoso texto Joana!!!
    amooo demais tudo o que vc escreve, a simplicidade e sinceridade nas suas palavras me deixam muito feliz e também me tranquilizam, pois creio que não somente eu mas muitas bailarinas travam uma batalha interna diária consigo mesmas, pensando se estão ou não no "caminho certo em seguir seu estilo próprio de dançar e sua personalidade ao ouvir sentir e dançar as músicas egipcias"...
    Toda vez que participo de um evento e recentemente participei de concursos aqui no Brasil onde havia uma presença massiça de clones de bailarinas famosas, sempre saio pensando que eu deveria ser como as outras, deveria dançar igual a uma famosa e aí ter a aceitação geral da plátéia, é aquele momento "pirar na batatinha" como dizemos por aqui!!! kkk... assisto meus videos logo em seguida de uma apresentação e sempre detesto e acho que eu poderia ter feito muito melhor e que possuo um nível tácnico muito superior ao que demonstrei no momento ... mas acabei "me deixando levar pela música e optando por realizar uma leitura musical com movimentos simples mas com total emoção sabe... então me acalmo e relaxo pois sei que dei meu melhor que dançei de corpo e alma!!! mas este conflito interno creio que ainda persistirá por algum tempo, apenas lendo seu texto me senti mais tranquilha e confiante pois vc me ajudou a perceber que estou certa em seguir minha intuição e que não devo dançar para agradar ou impressionar ninguém... isso é maravilhoso. Vc é uma grande bailarino e admiro seu trabalho desde 2008, tenho planos como já comentei em te conhecer pessoalmente e espero que seja em 2013!!!
    :)

    BJsss

    Att.
    Janahina Borges

    ReplyDelete