Friday, October 23, 2009




Cairo, dia 20 de Outubro, 2009

“De momentos assim se faz a vida do lado de cá”

9.30 – Acordo em sobressalto e exausta porque cheguei tardíssimo dos espectáculos de ontem à noite, não dormi o suficiente e o alarme não tocou!

10.00h – Saio de casa a correr e passo pelo “Cilantro” para comprar um sumo, qualquer coisa que me faça lembrar que mais um dia teve início.
No caminho para o ginásio, procuro o céu, as folhas das árvores, os gatos, os cães e as borboletas. São estas as coisas que me interessam na rua e nunca deixo de me admirar pela forma tonta como os busco e observo, mesmo quando estou com pressa.
Ignoro os piropos ordinários dos homens que por mim passam. Há dias em que consigo virar-me para dentro e fingir que as palavras ordinárias de reprimidos com vidas vazias não são mais do que insignifcantes formigas passando por mim.

11.00h – Aula de Yoga no ginásio que frequento.
Entro no vestiário das mulheres e observo como uma rapariga egípcia ajeita o seu “hijab” antes de treinar (mesmo na zona reservada a mulheres apenas). Imagino como deve horrível praticar desporto com a cabeça e ombros totalmente cobertos e pergunto-me qual será a necessidade de cobrir-se num espaço em que só se encontram mulheres?!
Há coisas que já – quase – desisti de tentar entender.

Chego esbaforida e desintegrada à aula de Yoga. Todo o contrário do que deve ser o Yoga, segundo a instrutora que o apresenta como UNIÃO e procura da VERDADE.
Lindo!

Para mal dos meus pecados, esta aula é aberta a homens e mulheres. Já me habituei às zonas segregadas no ginásio, nas mesquitas e no metropolitano. Homens de um lado e mulheres do outro.
Sei que soa horrível e tacanho admitir isto mas confesso que, num país como o Egipto, usufruir de zonas segregadas nas quais sei que não vou ser sexualmente assediada (à partida) é um alívio.

A instrutora adverte o pessoal para se centrar apenas em si mesmo e na própria respiração e eu senti, desde início e quando ela referiu um singelo “não fiquem especados a olhar para a vizinha do lado, centrem-se em vocês mesmos”, que os avisos não seriam eficientes.

Tenho um rapaz de óculos obtusos (tem aspecto de ser saudita) colado ao meu “derriére” e mais dois egípcios colados a outras zonas do meu corpo que nem vale a pena mencionar.
Não me escapo do assédio na aula de Yoga. Os avisos da instrutora cairam em saco roto, como eu previra.
Enquanto executo, em toda a minha plenitude, a posição do guerreiro, dou de caras com o saudita de óculos obtusos que me faz “olhinhos”.
Por momentos, ponho a hipótese de uma irritação ocular, talvez um mosquito que conseguiu passar pelos pórticos aterradores daqueles óculos fundo de garrafa e o atormenta, desafiando-o no seu intrépido caminho para a Iluminação.
Naaaah........ nada disso! Apesar de eu querer acreditar na evolução do espécime masculino, isto é um clássico episódio de “olhinhos à moda saudita” (diferente em estilo dos “olhinhos à moda egípcia ou libanesa” mas semelhante em objectivos pretendidos e na irritação que em mim provoca).

Tento direccionar o meu olhar de forma diferente para dissipar o clima de “terror-romance” entre mim e o saudita. Dou de caras com um egípcio que me espreita o decote (a posição do guerreiro é mesmo jeitosa para miradouros).
Para onde olhar?
Como não perder o equilíbrio quando me vejo mal dormida, mal acordada, sem comer e com a irritação de ser assediada numa aula que eu frequento, precisamente, para me acalmar e centrar?!

Uma mosca pousa-me no nariz. A instrutora continua a pedir – já quase em desespero – para cada um olhar para dentro de si mesmo ( “esta rapariga é uma sonhadora à séria”) e para usarmos as “distracções” como desafios à nossa capacidade de concentração.

Vamos a isso...

13.30h – Regresso a casa correndo, para não variar.
Almoço à pressa, tomo banho, maquilho-me, arranjo os cabelos e perfumo-me até ao fundo da minha alma. A rotina do costume. Tento que nada disto me soa a “deja vu”. Agradeço a Deus poder estar a preparar-me para fazer o trabalho que mais amo. Nada disto é usual ou pequeno.
Respiro fundo.

15.30h – Chega a minha assistente com queixas sobre a sua família e recontando o drama que é viver com uma filha egípcia de 18 anos que se quer casar e não sabe como. Parece que a rapariga, já com 18 anos e ainda solteira, teme ficar para tia. Já está quase a passar do prazo de validade e ela sabe bem disso.
Tanto ela como a sua família andam à caça de noivo e todos levam essa tarefa muito a sério.

O telemóvel – que anda, normalmente, com a filha casadoira – toca de cinco em cinco minutos, cortesia dos rapazes/homens ( e super religiosa) que lhe ligam para combinar encontros furtivos ou apenas para passar o tempo vazio ao telefone.
Um dos telefonemas chega de um homem que ela conheceu no metropolitano e com quem trocou, de imediato, números de telefone.
Eu a fugir deles e esta rapariga casadoira atrás deles!
Eu a dar-lhes sapatadas quando se atrevem a tocar-me ou a mandar um piropo mais picante e esta aspirante a freira a persegui-los e a trocar números de telefone em segundos.

Eu, a devassa bailarina que representa o “haram” e a vergonha da moral feminina, abençoando a zona reservada só às mulheres.
A rapariga casadoira, coberta com o “hijab”, conservadora e grande opositora ao trabalho ínfame da sua mãe que suja as mãos e a alma ao trabalhar com uma “RAKASAH” (“Bailarina”, em árabe), correndo atrás de homens no metropolitano e rezando a Alá para que homens e mulheres se misturem no metro em festas de regabofe e folia de origem variada.

Irónico.
Adoro o Egipto!

17.30h – Chegamos ao trabalho.
Acende-se o “boukhour” (incenso), faz-se o chá e preparam-se músicos, adereços e eu mesma tentando que o meu cansaço e sono não transpareçam nos espectáculos de hoje.
Respiro fundo.

Tres espectáculos seguidos e dois pares de sapatos partidos ao meio graças ao poderoso efeito do “mau olhado”. Um fantástico trambulhão em palco graças a um dos sapatos que se abriu ao meio como o Mar Vermelho em histórias bíblicas. Muitos aplausos e momentos de extâse, apesar de tudo.

23.00h - Corro para comprar um novo par de sapatos para o último espectáculo da noite. As ruas de Zamalek estão apinhadas de gente e as lojas estão abertas até muito tarde. Esqueçam Nova Iorque, o Cairo é a verdadeira cidade que nunca dorme!

Os carros apitam e gritam de forma irritante.
Escolho uns sapatos num par de minutos e regresso ao trabalho.
Abençoamos os novos sapatos e a mim mesma com mais incenso.
Isto de viver no Egipto despertou-me uma veia supersticiosa que desconhecia possuir.

Chegam-me casais com bebés ao camarim para tirar fotografias comigo, antes e depois do último espectáculo da noite.
Sorrio, feliz e exausta. Tenho paciência e sinto prazer em dar atenção às pessoas que com tanto carinho me vêm ver. São elas que dão sentido a tudo o que faço.

Mais chá, mais incenso, mais bençãos em português, árabe e na linguagem silenciosa da Alma que me protege, acima de todas as invejas e maldade alheias.

1.30h – Regresso a casa.
Um amigo telefona-me e diz que me espera com o restante grupo do costume. Teria eu energia e disposição para ir ter com eles?! Estão todos à minha espera, acrescenta ele.
Não tenho energia para tal. Preciso do meu silêncio, da paz da minha sala mergulhada de alguma inércia e conforto. Preciso de encontrar-me, nem que seja apenas por algumas horas, antes de deixar que um novo dia amanheça.
Acender uma vela no quarto. Abrir todas as janelas e deixar o ar correr e limpar a casa e, quem sabe, aquilo que em mim também precisa de ser limpo.

Assimilar as palmas que recebi, todas as emoções vividas e até o efeito do mau olhado de que fui vítima. Preciso de entender o porquê desta noite e quais os próximos passos a dar na direcção do crescimento.
Preciso de carregar no botão: PAUSE.


Vejo as luzes da cidade resplandescentes e ao rubro. Fecho os olhos e sinto o ar fresco da noite quase Outunal tocando-me as faces cansadas.
Revejo, mentalmente, os melhores momentos da noite e toda a atenção que me foi dada. O apreço, o reconhecimento de qualidades que nem sempre vejo em mim mas que o público consegue identificar e, graças a Deus, amar.
Todos procuramos quem nos aprecie e ame. Todos nós.
A minha arte é um pretexto para satisfazer essa procura.

2.30h – Chego a casa.
Esvaziar malas e estender traje atrás de traje completamente encharcados em suor e prazer.
Canto no chuveiro. Ensaio o meu próximo “desafio”. Penso em como o cantarei e dançarei. Páro a meio do ensaio molhado. Há que PARAR e silenciar para voltar a criar com frescura e verdade.
Adormeço em paz.

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