Cairo, dia 4 de Outubro, 2009
“Rústica para sempre...já no Cairo.”
Abriram-me as malas de viagem no aeroporto do Cairo, advento que sempre temo não por transportar cannabis dentro do meu pc mas porque sei, por experiência própria, que as minhas malas não se voltam a fechar tão facilmente como se abrem.
Já vinha com peso acumulado – mais de 50 kilos de bagagem! – e não vinha com disposição para “abrir o meu mundo rústico” aos senhores da alfândega egípcia que querem, mais que tudo, um pouco de conversa com uma miúda gira e/ou uma boa gorgeta por baixo da mesa para que a mala, afinal “afinal” e vistas bem as coisas, não tenha de ser aberta.
Assim que a abriram e começaram a remexer no que lá vinha dentro, não pude deixar de rir quando um chouriço veio parar, triunfante na sua avultada dimensão de enchido de primeira classe, às mãos de um dos polícias do controlo alfandegário. Mais me ri ainda quando ele se prestou ao ritual um quanto “abichanado” de contemplar o chouriço com olhar guloso e apalpá-lo como se dali pudessem sair ricas porções de cocaína.
Conforme me desmanchavam a mala – sob os meus sérios avisos de que teriam de ser eles mesmos a refazer essa mesma mala agora caótica – pude admitir para mim mesma ( com um orgulho quase tão visível como o do chouriço alentejano que foi massajado nas mãos curiosas do polícia) que a minha bagagem é um reflexo fiel daquilo que eu sou, na minha essência.
Vejamos o “vergonhoso” conteúdo das malas generosamente exposto a público:
1. Fiel às minhas raízes familiares – gente de trabalho do campo alentejano – lá tive de trazer chouriços (proclamados novo símbolo “gay”), presunto, queijos regionais da zona de Évora, mel, nozes e azeite.Também fiel às minhas raízes lusas, lá veio o bacalhau (embora norueguês, um curioso e até suspeito símbolo do nosso país) em postas cortadas à medida em poética mistura com os queijos.
2. Cremes e perfumes e muita “lingerie”. Algumas das minhas fraquezas de mulher (seria chocante admitir o que posso chegar a gastar numa bela peça de “lingerie” mas, afinal, estamos a falar de obras de arte não reconhecidas como tal...ainda!).
3. Livros e mais livros, como se estes me faltassem (tenho pilhas de livros que esperam serem lidos em inglês, espanhol, francês e português espalhados por toda a casa no Cairo e mais uns quantos em Portugal).
Eis as maravilhosas pérolas que não pude deixar “em terra” (adquiridos em Portugal):
*A música da fome, de J.M.G. Le Clézio e Capitães da Areia, de Jorge Amado – Ambos os liv ros foram escolhas curiosas e bem acertadas do meu pai que já percebeu que os melhores presentes que alguém me poderá dar são mesmo livros.
*Um mundo para Julius, de Alfredo Bryce Echenique.
Este livro foi “apanhado” numa tão comum estação de correios e despertou-me o desejo de o ter pelo simples facto de ter sido escrito por um galardoado autor latino-americano. Partindo do princípio que a escrita quente e húmida da América Latina é das minhas preferidas (Gabriel García Lorca encontra-se no meu lote de autores favoritos), decidi arriscar nesta leitura improvável (ultimamente só lia livros relacionados com o Médio Oriente).
* Harriete Wilson´s Memoirs, The Greatest Courtesan of her time
Uma escolha politicamente incorrecta mas, infelizmente, muito ligada ao mundo da Dança Oriental que me rodeia no Médio Oriente.
Sendo eu a antítese do que é uma cortesã – ou prostituta de luxo – mas sendo também empurrada para esse escuro universo por força as minhas circunstâncias profissionais, torna-se irresistível conhecer melhor a cabeça de uma dessas mulheres que vendem o corpo e a alma por riquezas materiais.
Dar-se a um homem por amor é um conceito, literalmente, extra-terrestre no meio onde me movo e daí eu ser sempre uma orgulhosa “outsider” que só se deita com quem ama. Vá-se lá entender as taras de cada um! Eu também tenho as minhas!:)
Em oposição a tudo o que eu sou, existe o mundo dos “lobbies” e “contratos de cama” para os quais nunca servi ( e daí já ter sido tão prejudicada na minha carreira!). Os truques, malícia e estratégias para “apanhar” os homens – e o conteúdo dos seus gordos bolsitos - são incrivelmente descritos neste livro e surpreendo-me com a facilidade com que eu mesma, face a tantas dificuldades e tentações, poderia ser uma destas mulheres. Separa-nos a educação, os valores e determinação de me fazer valer por quem sou e não apenas por um corpo que tem preço (como uma vaquinha ou uma ovelha ) mas, acima de tudo, o que mais me distancia destas cortesãs (tantas vezes fui tomada por uma delas) é um sentido de DIGNIDADE enorme que me dá um ar decidido que muitos tomam por ARROGÂNCIA.
Ler este livro é como conhecer melhor o “inimigo” e a imagem errónea pela qual já fui tomada, enquanto bailarina, tantas e tantas vezes. Fantástico. Moral da história: Comida da santa terrinha, lingerie/perfumes e cremes e...livros (em plena representação de prazeres capitais na minha vida).
Poderei eu ser mais previsível que isto? Eis-me aqui na minha dimensão mais simples e banal. O “vergonhoso” conteúdo clássico das minhas malas de viagem.
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