Wednesday, October 28, 2009



Cairo, dia 29 de Outubro, 2009

“Pressa?!
Isso é doença cardiovascular que se apanha no Inverno?!”


Existem conceitos naturais e óbvios para uma cultura e totalmente estranhos e até incompreensíveis para outra. O conceito de “ter pressa” é um deles.
A qualquer momento, poderei escutar um egípcio dizer-me em inusitada surpresa:
“-Pressa?! O que é isso? Uma doença contagiosa?! Eh lá, é preciso ter-se cuidado com estas epidemias malucas que por aí andam...as gripes, agora essa coisa chamada pressa...”

Orientalistas do século XIX descreveram os árabes e os egípcios, em particular, sob uma luz pouco positiva mas sempre com atenção a um detalhe de suprema importância:
Deste lado do mundo, usufrui-se à séria do pouco que se tem.
Nunca vi povo que soubesse evadir-se tão bem como o egípcio nem apreciar os prazeres e os sentidos de que a condição humana é possuidora de forma tão elaborada e profunda.
Não há sentido de humor como o egípcio, não há languidez e tranquilidade despreocupada como à egípcia, não há ócio como o egípcio, não há capacidade festiva como a egípcia e, definitivamente, não há pressa!

*** Já desisti da presunção de saber mais ou melhor do que quem quer que seja.
Estou por tudo. Porcos a andar de bicicleta, extra-terrestres de todas as qualidades e feitios, nada mas absolutamente nada nesta vida me impressionará ou me fará regressar aos antigos padrões de julgamento.

*** Lidar com egípcios 24 horas por dia pode ser interessante, exasperante e puramente enlouquecedor. A adaptação aos seus valores e conceitos – estranhos aos nossos olhos de europeus ou ocidentais – passam por várias fases e penso que ninguém se habitua a 100% a todos os absurdos deste estilo de vida mas...faz-se um esforço, nem que seja para se sobreviver a um estado de senilidade ou demência precoces.

*** Simples viagem de táxi...
Aquilo que é uma simples viagem de táxi de cerca de 3 minutos torna-se, quando menos esperamos, numa longa e dolorosa espera sem fim.
Saio do ginásio a correr em direcção a casa, já atrasada e esbaforida, como sempre.
Penso em ir a pé e salvar-me do caos do trânsito mas considero que apanhar um táxi levar-me-á até casa mais rapidamente do que as minhas pernas (estas minhas intuições “lixam-me” quase sempre).
Apanho um táxi com um condutor tranquilo – bom sinal!? – e prestável. Sento-me com o cuidado de esconder pernas e decote para não atiçar a fera e rezo para que não apanhemos trânsito para chegar a casa rapidamente.

O Sagrado Corão ecoa dentro do táxi velho como a voz do Adamastor no fundo de uma cave, alertando os navegantes para os perigos e tentações da passagem de um canal importantíssimo para a história da Humanidade.
A voz que salmodia na cassete do taxista é zangada e a roçar a raiva. Por momentos, ponho a hipótese de pedir ao senhor que desligue a aparelhagem de som mas sei que isso seria uma ofensa – o Corão é sagrado – e quero chegar a casa sem precalços e depressa.

Reparo que o caminho tomado pelo taxista é mais longo do que aquele que, normalmente, tomo para regressar a casa. Pergunto-lhe porquê.
“Ah, sim...tenho de entregar um saco a uma vizinha minha e ela mora mesmo ali na esquina. É só um segundo...” – Diz-me ele sem o mínimo de preocupação pelo meu tempo ou...pressa.

A vizinha lança um cestinho atado a uma corda pela varanda a baixo e ele entrega-lhe a encomenda. O cestinho regressa à varanda de onde foi lançado e não há meio do taxista aparecer.
Abro a porta do táxi e olho em todas as direcções acabando por identificar o corpo gorduchinho do taxista prostrado em oração atrás do carro.
Abro a boca naquilo que deve ter sido a expressão mais admirada do Universo.
Ali está ele, pacificamente rezando sob o seu tapete (de onde surgiu o tapete?!) e deixando-me à espera sem um aviso nem pedido de desculpa.

A religião e os seus rituais formais são desculpa e justificação para TUDO no mundo árabe. Em nome da religião, TUDO ou quase tudo se faz e nada é mais importante do que rezar e cumprir os pilares descritos no Sagrado Corão.

Não sei onde estou – para poder sair dali e apanhar outro táxi – e não sei que dizer enquanto a Vossa Excelência reza à sua vontade.
Penso em tocar-lhe no ombro e despertá-lo para a “realidade”, lembrando-o que deixou uma cliente “pendurada” e com “pressa” esperando-o no seu abençoado veículo. Qual seria a sua reacção se o interrompesse em plena reza?! Não quero que me deixe ali no meio de nenhures numa altura destas em que já estou mais do que atrasada e sem ver quaisquer perspectivas de transporte alternativo.

Que fazer?!

É nestas alturas que maldigo a nação, a mentalidade, os costumes e tudo e mais alguma coisa. Eu tenho aquilo a que vulgarmente se chama PRESSA mas esse conceito é inexistente para o comum dos egípcios. Chega-se quando se chegar, nas calmas e apenas se Deus quiser.
Pontualidade é vista como uma excentricidade e correr em direcção a algum trabalho ou compromisso é olhado de lado como um sintoma claro de loucura.

O senhor lá se apercebe da minha agitação e resume o seu ritual, enrolando cuidadosamente o seu tapete e voltando a colocá-lo no porta-bagagens com uma calma que daria urticária ao próprio Dalai Lama.

“Eu tenho pressa e estou atrasadíssima, sabia?!” – Pergunto eu, esperando por um sinal de desculpas ou compaixão para com o meu drama pessoal.

“Pressa?! Sim, sim...vamos já a caminho. Só um segundo...é só um segundo...”- Responde ele com a mesma placidez de antes.

“Grrrrrrrrrr...” – Eu, eu, eu, eu.

Voltámos à estrada numa velocidade que não devia rondar nem sequer os 30kl/ hora e eu pedindo que se despachasse porque estava com pressa. PRESSA.
Nada a fazer!
O senhor fez um voto de que hoje, hoje mesmo, enlouqueceria uma estrangeira e testaria a sua paciência. Assim o fez, cumpridor do seu voto.

A viagem que poderia ter demorado 3 minutos, acabou por demorar mais de meia hora.
Por mais ofegante ou “stressada” que eu pudesse mostrar-me, o taxista não se deixou afectar pela epidemia da “pressa” nem por um segundo.

Onde começa e acaba o respeito pelas diferenças?!
O que era mais importante:
O cestinho da vizinha e a sua reza ou os meus compromissos?

Sim, podemos argumentar que o senhor me estava a prestar um serviço pelo qual estava a ser pago e que, por isso, devia cumprir o seu trabalho e só depois sentir-se livre para rezar, meditar com os anjinhos ou destribuir pepinos e alfaces pelas vizinhas todas do seu bairro.
Mas, num país como o Egipto, o dever religioso está acima de qualquer outro e, como ninguém costuma andar à pressa, imagina-se que ninguém – incluindo eu – tem de cumprir horários.
Eu sou apenas mais uma excêntrica que detesta esperar e fazer outros esperarem por mim. Os egípcios olham para gente “comme moi” com o olhar condescendente de quem tolera um maluquinho (“aqueles estrangeiros são obcecados com as horas!” - afirmam os meus compatriotas egípcios nas costas da estrangeirada).

Observei a minha respiração ofegante (lá se vão os benefícios do Yoga...) e a minha aura de irritação extrema que me deve ter rodeado de uns tons negros de meter medo ao susto.

“Isto tem de parar. Não me vou irritar assim por causa de um taxista! Respira fundo, Joana. Respira.” – Afirmei eu para mim mesma.

Lutar contra este sistema nas suas mais diversas frentes é, quase sempre e irremediavelmente, uma batalha perdida.
O conceito de pressa, como o conceito de perfeccionismo ou franqueza são estranhos à esmagadora maioria dos egípcios e árabes.
A simples acção de PENSAR ou QUESTIONAR é considerada “haram”, especialmente se aplicada por uma MULHER.
Já deixei de julgar aquilo que não compreendo e vou aprendendo a deixar-me levar pela corrente em coisas menores.
Sem deixar de ser aquilo que sou, no mais essencial de mim mesma, tenho de curvar-me um pouco e aceitar tanto do que não posso mudar.
Estou a caminho...

No comments:

Post a Comment