Cairo, dia 14 de Novembro, 2009
“Sayeda, a história real de uma sonhadora perdida”
Isto é mesmo à séria.
História real mas com o nome da protagonista trocado para não ofender, mais que tudo, a minha própria consciência ( a verdadeira protagonista desta história só fala e lê árabe e, por isso, seria pouco provável que viesse a tomar conhecimento da sua história pessoal assim exposta aos olhares e juízos de estranhos).
Costumo dizer que basto eu e a minha consciência para nos sentirmos mal o suficiente. Assim sendo...aqui vamos.
“Era uma vez...no país onde as Pirâmides de Gizé ainda sobrevivem empoeiradas...”
Vivia uma senhora egípcia que sonhava ser artista.
Sayeda ainda pode recontar às centenas de vezes a história dos serões a que o seu avô músico presidia, serões esses que se transformavam em autênticas tertúlias musicais estendidas pela noite fora.
Os dedos do avô percorrendo aquele instrumento mágico que a levava, a Sayeda, até outros mundos bem mais perfeitos e onde tudo estava em PAZ.
Sayeda alimentava o sonho de ser artista como o seu avô.
Não sonhava casar-se, como a maioria das meninas egípcias faz desde que começam a conhecer-se por gente. Ela sonhava ser ARTISTA.
Não interessava exactamente em que área mas sim ARTISTA pois esta palavra mal amada pelo seu povo atado a tradições e ignorâncias várias trazia com ela uma idea escondida de LIBERDADE e EXTÂSE (ambos conceitos perigosissimos nas sociedades arabes actuais).
O avô não viveu tempo suficiente para ensinar Sayeda a tocar alaúde.
Quando cumpriu 7 anos de vida, a mãe avisou-a em tom ceremonial que hoje seria um dia especial, o dia em que ela se transformaria numa “senhora respeitável”.
Levaram-na com a ajuda de outras mulheres da família até uma casa contígua e aí lhe excisaram o clítoris sem a mínima piedade pela dor ou os gritos lancinantes que ela lançou a um Deus que a parecia ter abandonado.
A pequena Sayeda recorda o frio da pedra do cháo onde a sentaram à força.
Recorda as mãos quentes de Inferno de uma criatura gorda e suada protegida pela sua monumental “galabeya” e “hijab” na cabeça.
Recorda o momento em que a mãe e a avó lhe agarraram as pernas e as mãos sussurrando palavras de apaziguamento nos seus ouvidos confusos.
Recorda, acima de tudo, o primeiro corte ácido de uma lâmina enferrujada passando pelo seu mínimo clítoris, despertando-a para uma realidade estranha que, até aí, havia sido silenciada: Cada mulher nasce com um “mal” a ser eliminado!
Sayeda pensou, atordoada: Como podia ter a sua mãe permitido tamanha dor e como poderia ela tê-la traído?!
Infecções, dor infinita e um sentimento ainda infantil (mas sábio) de que uma parte essencial do seu Ser lhe tinha sido roubado, eliminado sem piedade.
Que crime poderia o seu corpo ter cometido para merecer um castigo destes?!
Lacerado, mutilado a frio com uma lâmina de barbear sob o olhar atento da sua própria mãe (também ela circumcisada), longe de toda a alegria e prazer de viver.
Mulheres de várias gerações já tinham passado pelo mesmo ritual. Uma geração parecia castigar a próxima como forma de se manterem juntas no mesmo barco de dor eterna. Um elo de dor e frio ligaria assim, para sempre, mulher a mulher. Corpo mutilado a corpo mutilado.
O seu pai respirou de alívio. As mulheres da família ulularam em conjunto lançando agudos “zagareet” que soaram pelo prédio inteiro. As vizinhas saberiam que a sua pequenina Sayeda era, a partir de agora, uma criatura pura, livre das tentações da carne. Embora Sayeda apenas tivesse 7 anos, as experientes mulheres da família sabiam que nunca era cedo demais para “cortar o mal pela raíz” e assim o fizeram sem peso aparente na consciência.
Nessa noite, comeu-se “molokheya” feita a preceito e cozinha pelas mesmas mãos que, momentos atrás, tinham eliminado mais um pouco da sujidade feminina deste mundo.
Quando Sayeda dançasse – em casa com outras mulheres ou para o seu futuro marido – fá-lo-ía com esmero, controlo e alguma tristeza patente no olhar.
Quando cozinhasse, repetindo receitas imutáveis transmitidas pela mãe, a sua comida saberia a cubos de gelo e raiva.
Quando se deitasse na cama partilhada com o marido, cumpriria estoicamente o seu “dever de esposa” sem mostrar um prazer suspeito que só se vê nas mulheres perdidas da vida. A dor de um clítoris inexistente e suas feridas nunca totalmente cicatrizadas encarregar-se-íam de lhe dar a dor que mulheres de tantos milénios carregaram. O corpo de delito. A Eva que caíu e fez caír em tentação. O sexo “fraco” que precisa de ser controlado e mutilado para que se transforme num “animal selvagem moldado, controlado e enjaulado”.
Sayeda daria um ou mais filhos varões ao seu marido e depois, “Inshah Allah”, uma rapariga para ajudá-la nas lides da casa.
Tudo isso fazia parte do destino natural (?!) de cada mulher.
A ordem não se questiona e, muito menos, aquilo que dizem que Alá disse ao profeta Mohamed, louvado seja o seu nome.
A partir daquele dia, o perigo de verem a sua filha perdida num futuro abraço de um homem tinha sido drasticamente reduzido.
(O prazer sexual feminino sempre foi tabu nas sociedades árabes sendo pressuposto que este pertence exclusivamente ao homem e que a função do sexo feminino é dar-se APENAS ao seu marido e com fins reprodutivos. Apenas prostitutas e mulheres “desviadas” retiram prazer do sexo.)
Sayeda habituou-se a essa desconfortável ferida permanente nas suas partes “impuras” como se de um peso na consciência se tratasse.
Mas peso na consciência porquê?! Que crime teria ela cometido?!
Assim pensava para si mesma a sonhadora Sayeda.
Sempre que Sayeda proferiu a palavra ARTISTA em sua casa, a resposta que recebeu foi uma reprimenda conjunta e valentes chapadas ecoando no fundo da sua alma.
A família recusou, dia após dia, ano após ano, a possibilidade de ver Sayeda caindo numa vida de desgraça, libertinagem e desvios múltiplos.
Durante a noite, ela sonhava com as actrizes dos filmes que passavam na televisão do café do Sr. Mahmoud. Revia na sua mente as danças de bailarinas flutuantes, o som da flauta e do acordeão, o aroma de liberdade e prazer que já lhe havia sido roubado...
Sayeda cresceu afirmando a pé juntos que seria artista, mesmo contra a vontade da família e a solução que a última encontrou foi casá-la com um homem trinta anos mais velho e recentemente regressado da Arábia Saudita onde dizem ter acumulado substancial fortuna.
Um homem maduro e sábio que, não só ofereceria um generoso dote aos pais da noiva, como a cobriria de jóias e a sustentaria até ao fim dos seus dias.
“Que mais poderia ela esperar?! Que mais poderia “qualquer” mulher esperar?!
Um marido que lhe desse um lar confortável, bonitas roupas, quem sabe até perfumes da Arábia Saudita?!”
Sayeda opos-se ao casamento com este homem que vinha da terra do deserto absoluto.
O seu irmão, numa tentativa desesperada de proteger a honra da família, ameaçou com ares de total seriedade que a mataria com as próprias mãos se ela enveredasse pelo caminho das “artes” e recusasse a dádiva de Deus que era este casamento.
“Não permitirei que o nome da nossa família seja arrastado pelo chão apenas porque Sayeda deseja ser “livre”. Livre para fazer o quê?! Para que quer uma rapariga ser livre?!
Para passar as noites em cabarets, fumando e bebendo com homens estranhos. Livre para se deitar com este e aquele.A liberdade para uma rapariga é o mesmo que o pão para um esfomeado. Ela não saberá onde e quando parar.
Além disso,os artistas são todos prostitutas, proxenetas ou vagabundos. Eu não permitirei que ela nos arruine.”
O noivo arrastou as suas peles caídas e a sua montanhosa barriga até à casa da jovem noiva estendendo à sua mãe ouro suficiente para casar um elefante com uma pomba. O brilho do ouro entregue ofuscou todos os presentes,excepto os de Sayeda.
Seria ela quem teria de se deitar na mesma cama com aquele corpo estrangeiro, cansado e feio. Seria ela e não a sua família, a despertar a cada manhã sob o respirar ofegante de um marido ansioso por procriar e dar azo ao desejo insaciável que lhe diziam ser apanágio exclusivo do sexo masculino.
Nada a fazer.
Ainda pensou em fugir de casa mas...para onde e com que meios?
Caso a polícia a apanhasse, ela seria imeditamente devolvida aos pais e ainda teria de sofrer com o assédio dos próprios polícias que deduziriam estar na presença de uma prostituta (só uma prostituta foge de casa em tais condições).
Aceitar a morte pelas mãos do irmão?!
Reflectiu no meio de lágrimas de lamentos inacabados. A sua mãe tinha sido “casada” da mesma forma, bem como a sua avó e tias...todas as mulheres que conhecia. Todas elas o tinham feito e sobrevivido.
Sayeda casou no “Aid” que encerra o Ramadão. O aroma doentio do degolar de carneiros confundiu-se com o seu próprio sangue na noite em que o marido a tomou nos braços para deflorá-la num acto de posse e propriedade totalmente assumida.
Dor aguda. Resignação ancestral. Silêncio forçado e apatia. Assim nascia a arte da mentira que também ela aprenderia a dominar como única arma de sobrevivência.
Nas fotografias existentes dessa noite memorável, Sayeda vê-se séria e com olhar morto. O noivo parece excitado com o novo brinquedo adquirido e ambas as famílias sorriem num ar protocolar que fala de solidão partilhada.
Lembra-se de ter despertado numa casa estranha onde agora ela teria de permanecer servindo um novo amo: o seu marido.
Ele saía para trabalhar deixando-a seminada e na ânsia de receber o primeiro filho varão. Ela olhava-o da janela do seu quarto partindo no seu carro luxuoso em direcção a uma mundo que não lhe pertencia a ela, mas aos homens como o seu marido.
Sayeda nunca deixou de sonhar em ser ARTISTA. Esse sonho vive com ela como um suspiro escondido e, irremediavelmente, suprimido.
Olha para a vizinha do lado. O marido daquela obriga-a a trabalhar fora de casa, enquanto ele passa o dia deitado na cama fumando “shisha” e cigarros, bebendo chá atrás de chá e comendo às custas da mulher. Quando essa vizinha não lhe traz os cigarros “Cleopatra” que ele gosta de fumar, Sayeda pode escutar o baque das tareias que este lhe dá.
A sua vizinha sai de casa todos os dias expondo-se num mundo feito de homens para homens e regressa a casa ao final da noite – sabe Deus de que trabalho, pobre criatura! – para ser recebida por um marido cruel que espera ser alimentado e vestido como um recém-nascido.
Quando Sayeda olha para o lado e observa a vizinha, dá graças a Deus pelo marido que tem e, em momentos de fugaz desabafo consigo mesma, chega a considerar a sua mutilação como uma marca de dignidade e boa ventura.
Talvez Deus a tenha “recompensado” pelo facto de ela ter sido purificada pelas mãos suadas daquelas mulheres cruéis. Talvez o seu destino não seja, afinal, tão negro como parecia ser.
Afinal, ela é mulher e que outras opções se lhe deparam?! As asas de uma mulher parecem ter sido feitas para serem cortadas.
Sayeda revolve as pulseiras de ouro que o marido lhe trouxe da sua última viagem à Arábia Saudita e presta uma atenção infantil ao seu tilintar de fonte fresca.
Dá à luz tres rapazes recebidos com alegria e suor.
Sorri suavemente enquanto o marido lhe fala de uma nova esposa vinda “express” da Arábia Saudita.
Respira de alívio. Já não será a única a suportar o corpo velho e negro do seu marido. Outra mais nova vítima partilhará esse fardo.
Ela sorri novamente perante uma situação que poderia aterrorizar tantas outras esposas.
Pede mais pulseiras de ouro ao marido. Ele cede ao pedido porque é generoso e um bom esposo.
Ambos esperam a nova esposa com ansiedade. Outra mutilada. Outra propriedade coberta de ouro, ilusões e sonhos perdidos.
O lado verdadeiramente positivo da chegada da nova esposa encontra-se no tempo livre que passa a ter para estar com os filhos, dormir sozinha e em paz e fugir, subrepticiamente, até ao café do senhor Mahmoud onde ainda se podem avistar os artistas que, outrora, ela admirou e invejou.
Melhor ainda...
Agora que a nova esposa está na sua casa, Sayeda ousa pedir ao marido uma televisão com todos os canais possíveis e imaginários para que ela e uma filha que ainda venha possam continuar a sonhar.
Ele cede novamente. A televisão e os múltiplos canais chegam com o peso de uma consciência ligeiramente desperta.
Ela olha para o marido enquanto este ressona no sofá depois de se ter deitado com a nova esposa.
Uma benção de marido...
E o sonho continua.
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