Sapatos vermelhos.
A minha relacao com o Tango tem sido turbulenta.
Tudo teve início com a minha viagem, no ano passado, a Buenos Aires. Embora fosse a trabalho na área da Danca Oriental, claro está, fiz questao de ver e escutar bom tango na cidade que o viu nascer e o meu desejo de entrar em mais um "sub-mundo" acabou por reinar sobre mim e os meus medos de dispersao.
Em Buenos Aires, perdi-me numa loja especializada em artigos de Tango e comprei os meus primeiros pares de sapatos próprios para esta danca. Gozei da minha primeira aula pelas maos de um belo professor argentino nas traseiras da casa de uma bailarina minha amiga e caí de amores (pelo Tango, nao pelo professor).
Isto de se ser apaixonada por muita coisa, simultaneamente, tem os seus custos. Financeiros, mentais, físicos, "you name it"...
Regressada ao Cairo, procurei aulas de Tango e lá fui eu com a curiosidade das criancas, aberta a todas as novidades de um mundo ainda por explorar. Vinda de uma Arte onde sou solista, orquestradora e o maior poder criativo em decisoes de movimentos, chegar ao Tango e ter de DIALOGAR com um parceiro foi um desafio. Tem sido, até agora...
Apercebi-me, desde cedo,que o Tango espelha as relacoes entre homens e mulheres ou o que elas deveriam ser.
Exceptuando as faccoes machistas que defendem que, no Tango (e talvez na vida) a mulher deve seguir o homem e abster-se de vontade própria, tenho aprendido a ESCUTAR o outro e a dar-lhe espaco para poder expressar-se e ser quem ele é. Nao que já nao o fizesse antes mas o Tango tem aprofundado essa vontade de APRENDER com um parceiro que traz uma visao própria da música, dos sentimentos e interpretacoes que ela lhe sugere.
As turbulencias chegam quando eu me aborreco com o parceiro que danca comigo por falta de estímulos criativos, quando o seu talento para a danca é nulo e estamos para ali a marcar passo como dois velhinhos num baile de colectividade de Carnaxide (nada contra o dito baile).
Aí desinteresso-me, desligo a ficha e comeco eu a comandar as tropas, como de costume.
Quando um dos professores de Tango do Cairo me disse que eu tinha de esquecer os meus impulsos criativos e apenas seguir o homem que danca comigo, "passei-me dos carretos"...desfiz-me em desinteresse e bocejos.
Desde quando sigo quem quer que seja e me abstenho dos meus impulsos criativos?!
"Isto do Tango nao é para mim, porra! " - Foi o que pensei, por algum tempo, até ouvir o canto da sereia, uma vez mais, e retomar uma ou outra aula onde apanho surpresas fantásticas e momentos de danca miraculosos, cozinhados em prazer profundo de voos e aterragens mansas.
Escutar o homem que danca comigo - quando ele sabe o que está a fazer - e surpreende-lo com a minha presenca e intervencao activa sem que isso o anule passou a ser o DESAFIO.
Quanto de mim estará na danca que os dois fazemos? E quanto dele? E como gerir o espaco de cada um e transformar um diálogo num monólogo de profundo entendimento e amor?!
Este parece ser o desafio do Tango e que belo desafio...
Sei que esta relacao entre mim e o Tango nao será fácil. E quem sou eu para virar as costas a um desafio?
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