Cairo, dia 28 de Agosto, 2010
Trivialidades Versus Sublime...
Pois é...a vida de uma bailarina no Cairo é composta destas aparentes contradições.Entre o trivial e o grotesco, sobrevivo. Entre o Belo e o Sublime, vivo.
O dia de hoje foi bem um exemplo do que é viver entre a lama e a fama.Senão vejamos (modo crú e conciso):
Acordo bem cedo com os músculos todos doridos (descubro que existem articulações ainda desconhecidas do saber académico da medicina) de espectáculos diários (já lá vai um mês!!!).
Olho-me ao espelho e vejo restos da maquilhagem da noite passada, incluindo um corpo exausto cheio de brilhantes que o duche nocturno não consegue eliminar.
Limpar a casa, pobrezinha, que tem sido relegada para segundo plano no meio da minha azáfama profissional.
Banho rápido, arranjo-me para dar mais uma aula particular de uma querida aluna vinda do Japão.A aula é maravilhosa. Redescubro o prazer de ensinar, apesar da minha preferência ir para os espectáculos. Antes de ser professora, sou bicho de palco.Momentos sublimes de partilha entre mim e a aluna.
Toca a campainha. É o homem que cobra a conta da electricidade. Cubro-me com a minha "abbaya" negra porque, se ele chega a ver-me nestes preparos da aula, dá-lhe um ataque de cacofonia e não chego a perceber quanto tenho de pagar pela luz.
Regresso à minha aula.
Dançamos juntas, uma para a outra, de mãos dadas sem termos as mãos dadas.
Depois da aula, compras no supermercado. Eu de chinelo no pé e carrapito mal amanhado sendo reconhecida por um empregado do estabelecimento (parece que os empregados dos supermercados de Zamalek andam bem informados sobre a "movida" da Dança Oriental!!!). Eu que vou ao super mercado para relaxar (sim, relaxar...) e ter um pouco de normalidade dentro da normalidade das massas que me rodeiam, sinto-me subitamente incomodada por ter de dar um autógrafo quando estou ali tão desleixada, o cabelo entre o norte e o sul e uns chinelos de praia que já deviam estar na reforma.Sorrio, tento ser simpática mas permaneço tímida. O empregado diz-me como adora ver-me dançar e que toda a família me conhece e que ficará maluca quando souber que eu , JOANA, estive no supermercado onde ele trabalha.
Enterneço-me. Tão carinhoso, o senhor...impossível ficar indiferente.
Faço as minhas compras ajudada pelo "staff" de todo o supermercado.
Alguns tiram fotografias com os telemóveis e isso não me agrada lá muito mas nada posso fazer. Quem gostaria de ficar para a posteridade nos telemóveis destes egípcios parecendo o Monstro das Bolachas (versão luso-egípcia)?!EU NÃO.
De qualquer modo, ponho a pouca vaidade que resta de lado e deixo que o meu momento "monstro das bolachas apanhado às compras" fique para a posteridade.
Joana colocando a embalagem de tampax no saco: UAU!!!
Joana ajeitando os congelados e o pacote do leite entre o óleo Johnson´s : UAU.
Chego a casa e verifico o email:
Mais uma maravilhosa proposta para ensinar e actuar fora do Egipto.Fico radiante, feliz, excitada e todos os objectivos que denominam um dia em grande.
Quando começo a preparar-me para tomar banho e todo o ritual que se segue, reparo que tenho a minha sanita entupida. Como não há tempo nem paciência para chamar um canalizador (isso seria uma odisseia com final imprevisível), eu mesma ponho mãos à obra (literalmente, hfgggrrrrrr....).
Luvas de plástico enfiadas nas mãos decididas, respiração suspensa e uma ténica de visualização que aprendi no yoga. Muito bem,Joana...adiante porque o tempo passa...
Visualizo um lindo campo cheio de girassóis e eis que o horror de desentupir uma sanita com as próprias mãos até não é assim tão traumático. Há coisas piores, diria a minha progenitora.
1,2,3. Operação desentupimento cumprida.
Olho para a sanita desentupida com as mãos pousadas nas ancas e olhar orgulhoso. Nada me pára!
Maquilhagem, cabelos, roupa, saída para o trabalho.
Mais dois espectáculos fantásticos, apesar - ou por causa - do meu cansaço já crónico.
Muitos portugueses na audiências mas esses, curiosamente, são sempre os únicos que não me cumprimentam ou acarinham. Fenómeno estranho que ainda não compreendi.
Noite cheia de emoções, momentos divinos, partilha, teste de novos territórios. Gosto disso.
Exploro Abdel Halim Hafez, pondo um pouco de parte da minha cantora de eleição (Om Kolthoum). Há tanto na música árabe para desenterrar...o tesouro é eterno e a sua arca não tem fundo.
Cinema depois dos espectáculos. Só uma boa sessão de cinema me consegue relaxar e fazer evadir da minha correria louca. O cinema é parte da minha terapia de auto-cura regular.
Pipocas, coca-cola, todo o cenário do típico "american dream"...um casal reconhece-me (hoje é o dua dos "reconhecimentos") mas, pelo menos agora, estou maquilhada e bem vestida. Acho que o meu ego não aguentaria mais um encontro PÚBLICO-MONSTRO DAS BOLACHAS num só dia.
O dia termina em Paz. Porque a vida é feita do mundano e do sagrado. Porque somos chão e somos céu.
Deus tem destas formas (sanitas entupidas, monstro das bolachas e etc e tal) para que eu jamais me esqueça que mesmo o sucesso é apenas uma circunstância mutável e inócua.
Desagarro-me do ilusório para me centrar no que é real, ao sabor do trivial e do divino.
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