Saturday, June 27, 2009

Cairo, dia 18 de Maio, 2009

“ Acabo de chegar ao meu Paraíso privado no Egipto!”

*** Existem muitos mecanismos de defesa contra as pressões e dificuldades da vida numa cidade como o Cairo. Existem fugas – conscientes ou inconscientes – e provas visíveis da forma como, dê por onde dê, os habitantes desta louca cidade têm, forçosamente, de encontrar escapes que protejam de senilidade precoce ou de tendências criminosas!
O haxixe e a sua propagação monumental um pouco por todos os sectores da sociedade egípcia, todo o tipo de drogas e prostituíção que se tornaram parte integrante e até socialmente aceite do quotidiano egípcio são prova de como, na maior parte das vezes, os escapes que escolhemos não são os mais benéficos.

*** Trabalhando numa área na qual preciso de um cérebro, de um corpo e de um coração sãos e claros, também eu busco essas formas de respirar fundo que me compensam do que veio antes e do que virá logo a seguir, as surpresas constantes– agradáveis e desagradáveis – os desafios para os quais eu raramente tenho armas sujas que sirvam, os imensos obstáculos já por mim referidos mil vezes.
Entre esses meus escapes, encontra-se a leitura – inglês, português, francês e espanhol...tudo o que me cative, desde arte a biologia – as idas ocasionais ao banho marroquino e às massagens, o treino no ginásio onde tenho tentado recuperar a minha prática de yoga e...umas mini-férias no Mar Vermelho, mais concretamente, em Nweiba.

*** Sonho com este pedaço de terra sempre que me encontro a caminho de alguma reunião ou espectáculo, encurralada no trânsito infernal do Cairo como uma sardinha enlatada, inalando um ar tão envenenado que nem os meus pulmões me pedem para respirar. Sempre que a pressão e os problemas se acumulam e a sua resolução não se encontra nas minhas mãos, sempre que a minha cabeça está prestes a explodir devido à sobrecarga de assuntos, prioridades e compromissos pelos quais apenas eu dou a cara, sempre que a realidade se torna demasiado pesada...sonho com esse pedaço de terra em Nweiba.

*** Fazendo justiça ao meu sentido aventureiro e, confesso, a alguma estupidez nata e tendência amnésica, concordei em apanhar o autocarro que me levaria até ao meu paraíso pessoal. A viagem faz-se bem de noite, eu adormeço que nem um bebé assim que o autocarro arranca e quando der por mim, já estarei em Nweiba!
Na minha sede de chegar ao destino tão ansiado, decidi não lembrar-me que a viagem dura cerca de 10 horas seguidas, existe tão pouco espaço entre uns bancos e os outros que as pernas de um ser humano regular ou até de um anão – como eu! – não cabem no espaço que a elas lhe é destinado, as poucas casas de banho existentes no trajecto são autênticas provas de sobrevivência a que qualquer Ranger ou Forças Especiais temeria fazer frente e o autocarro estava LOTADO.

*** Quantidade de mulheres no autocarro: Duas. Eu e mais uma holandesa gorduchinha que parecia fazer estremecer todo o autocarro sempre que se movia na sua cadeira.

*** Quantidade de estrangeiros no autocarro: Dois. Eu e a supra citada holandesa de carninhas abundantes. Pode parecer um comentário xenófobo mas só quem vive entre egípcios e árabes 24 horas por dia, durante todo o ano poderá compreender o alívio que é a presença ocasional de um estrangeiro que, para variar, não nos observe como se fossemos um extra-terrestre, não nos assedie sexualmente e não tente entabular conversas íntimas como se nos conhecessemos há vinte anos! Por mais que consiga ver o lado positivo dos povos que me rodeiam – a versão masculina desses povos, porque lido com muito poucas mulheres – a verdade é que a presença de estrangeiros num local fechado que partilharei com 60 pessoas, traz uma lufada de ar fresco e um sentimento de familiaridade e conforto que eu aprecio.

*** Onde fiquei sentada: O.k, aquela história de nos concentrarmos e visualizarmos o que desejamos para nós de forma a atraí-lo e deixar de lado os pensamentos e projecções negativas deve fazer algum sentido mas... a realidade é que eu me projectei deitada num confortável assento com dois lugares vagos só para mim e acabei sentadinha e encurralada ao lado de um senhor egípcio de carinhas ainda mais abundantes do que a holandesa deixando-me sem espaço para respirar ou sobreviver porque cada gesto meu passou a ser submetido ao escrutínio atento deste “gentleman” bem nutrido. O pior de tudo foi o pequeno detalhe do duche que este senhor não deve ter tomado nas últimas semanas e num mau hálito impressionante que colocaria o hálito do nosso cão Gil ou até mesmo a bomba de Hiroshima a um canto!
Entre a vontade de me movimentar e não o conseguir e as preces para que o senhor não bocejasse (“oh, não...lá vai ele de novo...nãooooo....por favor, não abra a boca!”), consegui encontrar uma posição bizarra de “yogi” na qual me pudesse aguentar – não sem dor! – as 10 horas de viagem ininterrupta e mentalizar-me para que o aroma “interessante” que se desprendia deste senhor não me aniquilasse como os gazes venenosos fazem aos seres humanos neste planeta Terra tão cheio de maravilhas e torturas inesperadas.
Horas de sono conquistadas: Talvez uma e não seguida. Por mais facilidade que tenha em adormecer em qualquer veículo que se mova, nem mesmo eu consigo passar ao lado de uma lata de sardinhas na qual estou metida com um senhor abençoado por divinas carininhas extra que não me deixa espaço para respirar com o volume do seu corpo e os aromas espectaculares que dele exalam quando abre a boca ou simplesmente existe, ali ao meu lado, persistentemente...que Deus o abençoe!




Incursões a w.c.s egípcios dos quais saí viva (embora não ilesa!): Duas. Depois de ter passado e sobrevivido pelas casas de banho na mesquita de Mohamed Ali – no Cairo – e da estação de comboios de Alexandria, já me tornei ilesa às terríveis possibilidades de horrores existentes nesta instituíção nacional que é o W.C. egípcio!




Ressonadelas do meu companheiro de viagem: Incontáveis. Entre o mau hálito e o concerto erudito que me ofereceu, não sei qual dos dois classificar como o mais fantástico!
Chegámos a Nweiba às 7.00h numa manhã para lá de luminosa que me pareceu mais uma miragem do que realidade. O sol já brilhava em todo o seu explendor e aquele ar “indefenível” que aqui se goza invadiu-me imediatamente como um amigo que nos dá as Boas Vindas a casa depois de uma longa e tortuosa viagem.
Uma série de taxistas beduínos atacaram o autocarro assim que este estacionou tentando angariar clientes para os seus veículos e para as suas mãos que se fazem pagar pelo simples transporte de uma mala ou uma simples informação.
“-Pode dizer-me que horas são, por favor?”
“- São 7.10h. Tem algum dinheiro que me possa dar?!”
Quando, depois de fazer o “check-in” no hotel e deixar as malas no quarto, tive o privilégio de mergulhar naquelas águas quentes e transparentes rodeadas pelas montanhas do Sinai e pela Arábia Saudita, não puder conter um profundo suspiro de alívio e alegria profundos. Tinha chegado ao Paraíso...aqui tudo se limpa e harmoniza. Aqui, os males do coração e o trânsito imparável da minha mente desaparecem como que por magia, preparando-me para regressar ao Cairo – o grande campo de batalha – com uma maior capacidade de decisão e de acção.
Entrei em transe face a este mar carinhoso que me embala. Dormi à sombra do chapéu de palha durante várias horas. Quando despertei, olhei à minha volta e custou-me a acreditar que estava, uma vez mais, no Paraíso. Tudo me pareceu um sonho...até que...




“Bom dia! Benvinda ao Egipto! Stá tudo bem? De onde és?” – Escuto um dos empregados do hotel gritar aos meus ouvidos depois de ter esperado, por momentos de doce ilusão, que não seria “atacada” por este género de mosquitos de praia...
“Bom dia. Sou de Portugal.” – Respondo eu de forma conclusiva e dirigindo o meu olhar a um livro que tenho na minha frente nitidamente tentando passar a mensagem de que não estou interessada no diálogo-inquérito- investigação policial que se seguirá e da qual eu conheço cada doloroso passo. O facto de eu mostrar completo desinteresse na conversa de ocasião não o desanima nem um pouco. Sempre admirei a persistência e resistência a recusas que a maioria dos egípcios alimenta e pratica tão maravilhosamente. A rejeição e um NÃO redondinho jamais foram razões para que desistissem de seguir em frente com o que pretendem e dessa atitude irritante muito teremos a aprender.
Sim, é por demais irritante a insistência com que nos tentam impingir produtos, serviços e pessoas mas é de admirar, simultaneamente, essa mesma persistência. Para quem desiste dos seus objectivos face ao mais pequeno obstáculo, sugiro que observem estas melgas rainhas da persistência!




Os empregados estão a fazer o seu trabalho, sei disso. É esta a forma que possuem de sobreviver ganhando algum dinheiro com marcações de massagens, viagens de barco, serviços variados e afins mas eu sei que antes de venderem o seu produto, lhes é ensinado a repetirem uma ordem precisa de questões que vão dar, invariavelmente, à vida privada dos turistas que se encontram na praia. Depois de perguntar-me de onde eu sou, sei que se segue a questão que introduz o primeiro passo de um longo inquérito que acaba em mexerico puro, muito distante dos objectivos profissionais que, à partida, os trouxeram até mim. Sei que pergunta se segue...e não falho!
“Estás aqui sozinha? Onde moras? Como é que falas árabe? De certeza que não és egípcia?! Onde está o teu namorado?” – Continua a melga profissional, apesar do meu óbvio desinteresse e expressão irritada. Fixo os olhos no meu livro, tentando que o guerreiro do mexerico se evapore de uma vez por todas.
Hmmmm...não sou assim tão sortuda! “Dream on, baby...”
“Vim com um amigo e falo árabe porque vivo no Egipto. Pode ir directamente ao assunto, por favor? Diga-me o que quer vender de uma vez por todas e saltemos esta lenga-lenga de perguntas inúteis, por favor...”




A melga olha para mim em estado de choque. Existe um silêncio entre nós que parece durar um século. Falar tão directamente a alguém sem floreados e desmascarando as suas intenções mais submersas sempre foi considerada falta de educação no mundo árabe. Segundo a tradição árabe, até as mais puras verdades deverão ser dissimuladas e colocadas à luz do dia de forma velada, subentendida e sempre com palavras bonitas. Dessa forma, podemos estar a mandar alguém dar uma volta ao bilhar grande mas de uma forma indirecta, coberta de mel que não é, no fundo, senão fel mas assim parece – à luz da ilusão que só os diplomatas conseguem criar – algo bonito e agradável. Um ladrão não se chama, segundo a boa etiquette árabe, ladrão mas sim agente desviante de objectos variados pertencentes a outrém. Chamar-lhe ladrão cara a cara parece ser mais grave do que o roubo em si.




Depois de recuperar do choque de ter encontrado uma estrangeira bárbara e incivilizada como eu, a melga profissional engoliu em seco e decidiu prosseguir com o inquérito, ignorando o meu pedido desesperado para que fosse directamente ao assunto: o que queres vender???
“Onde está o teu namorado? O que fazes no Egipto?” – Prosseguiu ele com o seu questionário ao qual eu respondi, concluindo muito claramente que não seguiria respondendo às suas questões.
A melga acabou por render-se e mostrou-me uma folha com a descrição de várias actividades aquáticas nas quais eu poderia estar interessada. Eu agradeci a informação e garanti que o contactaria, caso estivesse interessada nalguma das ofertas arrancadas à custa de tanta conversa vazia. Ele seguiu, cabisbaixo e ainda em choque, para um casal idoso que estava ao meu lado, começando por elogiar a beleza quase centenária da senhora e bajular o homem que, acreditando nas palavras da melga, era um digno representante dos “pachás” de outros tempos. Assisti à forma como a bajulação e falsos elogios lhe renderam uma boa gorgeta e como conseguiu levá-los a comprar viagens e serviços que nem sonhavam que existiam apenas pelo poder dessa instituição nacional egípcia que é a CONVERSA VAZIA (“kalam fadi”, como se diz em dialecto egípcio) e a BAJULAÇÃO.

*** Como em tudo o que acontece neste país, existe um lado negro e um lado luminoso de todas as realidades.
Depois de me livrar da melga profissional, respiro profundamente e começo a acordar de uma anestesia da qual não me tinha apercebido. Quando a realidade e tudo o que ela engloba é demais para os nossos sentidos, mente e coração, tendemos a ausentar-nos do estado de “sentir” normal de forma a recuperar forças, fé, energia e uma boa dose de humanidade que corremos o risco de perder no decorrer de tantas experiências que nos levam ao limite das nossas forças.
Acordando da anestesia geral na qual me encontrava, ganho coragem para fitar as montanhas mágicas e protectoras do Sinai, mesmo na minha frente. Não as sinto como paisagem longínqua mas como os braços de Deus acalentando, protegendo e afagando a minha alma. Dou graças a Deus pelo privilégio de estar aqui, uma vez mais.

*** Os jardins do hotel nunca estiveram mais resplandescentes. Flores exóticas e todo o tipo de vegetação frescos e mais vivos que nunca. Uma festa para os sentidos e para os variados pássaros que aqui constroem lares coloridos com o seu canto dia e noite. Tudo parece perfeito e a perfeição é um conceito que eu jamais associei ao Egipto. Maravilhoso, sim. Divertido e surpreendente, supostamente. Mas não perfeito. A perfeição não consta do dicionário egípcio. Ou não constava, até agora...

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