Monday, June 29, 2009






Cairo, dia 22 de Junho, 2009

“Il Zaar – “rave parties” caseiras para libertar demónios e outras maleitas...”

*** Hoje acordei pesada e molhada do calor que me derreteu durante a noite para assistir a um espectáculo único: as minhas duas garotas (gatinhas, Sweetie e Kenzi) num estado de rara cumplicidade e entendimento, brincando/torturando uma barata tão grande que mais parecia um pequeno pónei.

*** Aproveitando um período aborrecido de mais burocracia (devido à minha abençoada transferência para o “Nile Maxim” onde partilharei o espaço com Asmahan e Randa Kamel), tento aprofundar os meus conhecimentos de dança e cultura, ler mais, coreografar para os eventos de Setembro ( e o DVD que acompanhará os mesmos!), ensinar o melhor possível nos cursos de Verão que estou a ministrar aqui no Cairo e também rever amigos, observar e assimilar tanta cultura e informação disponíveis nesta cidade louca onde o vulgar se confunde com o espectacular e nada é aborrecido ou previsível...

*** Reúno-me, depois de meses sem o ver, com o meu amigo Mohamed (el Sayed) com quem estudei, lado a lado, apredendo com o nosso querido primeiro mestre, Shokry Mohamed (infelizmente, já falecido).
Dançamos juntos, conversamos na sua casa rústica na famosa rua de Mohamed Ali (outrora conhecida pelas várias agências de artistas e, actualmente, reduzida a pobres lojas de instrumentos musicais e casas das últimas “awalim”), trocamos impressões e discordamos sempre com o respeito e vontade de aprender com que nos conhecemos um ao outro, numa altura em que ninguém poderia ter previsto as voltas fantásticas que a vida deu!

*** Enquanto estou envolta numa rotina constante de espectáculos, raramente tenho tempo ou energia para me lançar em domínios desconhecidos e sair à noite. Aproveitando este irritante – mas útil! – interregno nos meus espectáculos, agradeço ao Mohamed algumas das experiências mais fantásticas que se podem ter no Cairo e com ele entro em mundos que, mais tarde, desejo mostrar às alunas que venham de Portugal numa viagem ao Egipto a organizar para o ano que vem!
Ele relembra-me que o Cairo não é composto apenas de hotéis de 5 estrelas e escritórios. Existe aquilo que a classe alta considera detestável e que poderemos chamar “sub-mundo baladi” onde as surpresas e beleza insuspeita estão sempre ao virar da esquina.

*** “Il zaar” – Rave Parties caseiras para libertar demónios e frustrações várias...


*** O Mohamed levou-me até uma povoação longínqua dentro do Cairo (esqueço-me de quão grande é esta cidade!). Povoações como esta não figuram nos guias de viagens (nem sequer no “Lonely Planet”!) e suspeito que ninguém – excepto loucos como eu – as buscam. Blocos de cimento salpicados de lojas ruidosas e iluminadas a mil cores, gente e mais gente a perder de vista e umas esquinas rafeiras por onde passamos para encontrar, como no fundo de um longo túnel, uma casa perfeitamente vulgar onde se pratica – há mais de 90 anos – um ritual semanal de “Zaar” presidido pela “sheikha” e frequentado por mulheres pobres sem dinheiro para divórcios, férias num SPA ou consultas de psiquiatras.

*** As sessões de Zaar remontam a um passado longínquo e podem encontrar-se, sob outras denominações, em várias culturas (africana, brasileira, marroquina, norte-americana, etc) onde os demónios/energias negativas de cada indivíduo são persuadidos a enfrentar uma música e dança tão catárticas que nem o mais persistente “encosto” consegue aplacar a sua própria extinção.
Independentemente daquilo que se possa chamar a estes encontros (acompanhados por músicos com um reportório específico para a ocasião), o que entendi e senti na pele foi o seguinte:

*** O ser humano precisa de escapes para libertar as suas frustrações, emoções reprimidas, energias-pensamentos- cargas negativas e a música-dança servem de veículo para tal libertação. Até aqui, nada de novo. Eu própria uso a dança e a música – o meu trabalho, no fundo – como catárse.
No entanto, o Zaar possui uma componente espírita muito forte, invocando almas do Bem e do Mal, manejando forças ambíguas que vivem, paralelamente, no Universo e dentro de nós mesmos.

*** A casa está pesada de tantos espíritos que ali repousam e assistem às danças espontâneas das mulheres que chegam e partem sem uma palavra que lhes saia da boca mas com mundos a preto e branco saindo-lhe dos corpos exaustos de uma vida que lhes pesa.
Existem alguns músicos – adufes, tabla e flauta nay – e uma cantora castiça que também toca adufe com as suas mãos rechonchudas, fortalezas calejadas de trabalho e dores constantes.

*** Eu sento-me com os meus amigos e sou persuadida a participar no ritual depois de já ter observado as danças de duas vizinhas que chegaram com os seus filhos ainda bebés a quem amamentam entre uma sessão de dança- espanta espíritos e a outra. Um mundo não incomoda o outro, antes se entrelaçam e completam: o visível e o invisível. O bem e mal. Todos Um, apenas faces distintas da mesma moeda...

*** Cobrem a face com um véu negro que as protege da luz e do olhar dos outros. Cerram os olhos e mergulham nesse poço sem fundo que é a sua alma, chegando onde a mente não lhes permite chegar, viajando através da música e do movimento para outras dimensões onde os que já se foram cumprimentam os que ainda cá estão e lhes limpam os mapas turvos do coração que já viveu e sofreu.

*** Cada mulher tem o seu estilo de movimento, a sua cadência e energia próprias. Frustrações e sonhos são dançados ao som de instrumentos e canções criadas pelo Diabo para servir a Deus ou por Deus para servir o Diabo. O objectivo destes ritmos parece-me óbvio e com muita naturalidade – a naturalidade da bruza que há em mim – me lanço a esse espaço comum de voos e escapes.
Danço ao som da percussão que me leva onde já vou, normalmente, com a minha arte. É esse o privilégio e o perigo de se ser artista: estar sempre em contacto com esse outro lado do Universo, essa dimensão invisível onde os espíritos nos suspiram ao ouvido e lhes podemos tocar com as mãos nuas de preconceitos e medo.

***O que mais me impressionou?!
A forma como as energias de alta e baixa vibração se misturam, pacificamente, num contexto onde ninguém julga ninguém e o conceito de realidade se perde.
Ter visto – através dos corpos em movimento – que o Bem e o Mal são uma e a mesma coisa, apenas degraus diferentes da escalada que todos percorremos em direcção à PAZ total (ou Deus, como se lhe queira chamar).

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