Saturday, June 27, 2009

“Trabalho em Portugal com Hosny Watatak – um pouco do Egipto na minha terra...”


Lisboa, dia 27 de Abril, 2009


“Trabalho em Portugal com Hosny Watatak – um pouco do Egipto na minha terra...”

Regressar ao meu país é sempre uma oportunidade para respirar fundo e hibernar, temporariamente, à distância dos holofotes dos espectáculos diários do Egipto. Por mais trabalho, promoções televisivas e entrevistas à imprensa que eu possa ter nada, mas nada se equipara ao nível de pressão, luta e julgamento constantes a que estou diariamente submetida no Egipto e, por isso, tudo me parece fácil, fluido e sem o peso dos meus desafios habituais.
Vim com o percussionista principal da minha orquestra do Cairo e não me desiludi com os resultados. Além de ser uma pessoa fantástica – aspecto essencial para mim! – o Hosny é também um daqueles raros profissionais e artistas de quem eu posso sempre esperar talento, eficiência, delicadeza e um profissionalismo a toda a prova. Caso raro, portanto...sei que ter o Hosny na minha rectaguarda – seja nos workshops como nos espectáculos – equivale a ter um chão bem semeado, fértil e atento a partir do qual não só retiro o que necessito mas também colho surpresas inusitadas, frutos sagrados de arte e generosidade, mesmo em momentos e circunstãncias nas quais qualquer outro percussionista apenas “cumpriria aquilo que dele se pedisse”. Gosto de ser surpreendida quando da arca se sacam tesouros que valem a pena partilhar!

Espectáculos:


O “background” musical que estava previsto e previamente assegurado para seguir o Hosny nos espectáculos acabou por desaparecer num segundo, provando – uma vez mais – que até amigos nos podem deixar desamparados e à nora. Aprendi a minha lição!
Também constatei que até alguns dos percussionistas que mais trabalham no nosso país têm extrema dificuldade em acompanhar o Hosny. Aqueles que se afirmam mestres da percussão e se dão ares de estrelas acabam por ficar reduzidos a simples e desajeitados principiantes ao lado do Hosny. Isso não só me entristeceu como me envergonhou porque eu assegurei ao meu músico que tinha contactado alguns dos melhores da percussão árabe em Portugal!
“Em terra de cegos, quem tem olho é rei!” e isso aplica-se a Portugal desde tempos imemoriais. Estes dias, tenho recordado As Farpas de Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão e a forma como descrevem o nosso cantinho à beira mar plantado como terreno fértil para falsos profetas e todo o tipo de mesquinhezes aplaudidas em ovação contínua. Continuamos a ser pequeninos não só em dimensão geográfica e económica como mental e não parece que a maioria das pessoas que aqui encontro, a cada visita que faço a Portugal, tenha o desejo de o alterar. A crise económica e um Governo que apenas desgoverna e se “governa” a si mesmo e aos amigos também não ajudam ao estado do país. Deixa-me triste constatar que este sítio onde nasci e do qual tanto me orgulho – o nosso Mar,a nossa Amália, a nossa História e gastronomia, a nossa alma de poetas e aventureiros, a nossa humildade de gente boa repleta de sal e sonhos – continua a descer as escadas que outros sobem. O espírito do “desenrasca” e do desalento nunca esteve tão vivo e isso reflectiu-se em tudo o que tenho feito em Portugal desde que aqui cheguei!
No entanto,não há nada que venha por mal mas tudo na vida chega com um propósito e “timing” perfeitos. O trabalho que era suposto ser apresentado por quatro percussionistas acabou por ser feito – e com louvor! – por apenas um percussionista e uma bailarina, já habituada a fazer omeletas deliciosas sem ovos ou qualquer tipo de especiarias.
Tendo constatado que o nosso “background” percussivo estava fora de serviço, ainda tentámos gravar as bases de percussão em estúdio para servirem de apoio à “tabla” ao vivo do Hosny.
Para quem não sabe, um grupo básico de percussão árabe é, normalmente, composto por:
Tabla ou darabuka, tocada pelo solista da orquestra que executa todo o tipo de variantes de ritmo e detalhes.
Dohola ou tabla de maior dimensão e som mais grave que executa as bases rítmicas servindo de apoio à “tabla” que assim fica livre para poder criar aquilo que se reflectirá em ornamentos ricos e expressivos para a dança.
Adufes, bendires e riqs que acompanham a dohola e a tabla criando uma base percussiva mais colorida, rica e sólida. Este “back-up” massivo acaba por dar corpo à zona percussiva da orquestra bem como alma e energia ao solista e à bailarina.
Esta é a estrutura com a qual eu estou habituada a trabalhar no Egipto e noutros países árabes onde estive em cena com uma orquestra.
A realidade com que me deparei em Portugal foi desoladora: eu, um cd e um único percussionista. O deserto em toda a sua angústia e vazio. Em vez de entrar em pânico, decidi tomar as rédeas da situação nas minhas mãos – como faço sempre – e corri com o Hosny para um estúdio de gravação onde passámos várias horas a entrar criar o impossível: misturar percussão ao vivo com uma base musical gravada em cd.
O Hosny gravou “takes” das 15h até às 22.00h e eu corrigi, indiquei, apoiei e tentei coordenar todos esses “takes” pelo mesmo período de tempo. Acabámos com os tímapanos à beira da explosão e com bases percussivas gravadas para tres temas e absolutamente nada que pudéssemos usar dessas mesmas bases.

O que aprendi desta experiência de estúdio:
· Um músico que é excelente ao vivo não é, forçosamente, excelente em estúdio (e vice-versa). Em ambos os campos se requerem qualidades específicas que nem todos os músicos acumulam. Em palco, a criatividade e a qualidade técnica aliados ao carisma e capacidade de improvisação/diálogo com a bailarina são qualidades essenciais a ter em conta.

· Em estúdio, a técnica, exactidão, criatividade, memória e disciplina mental e física dão o mote para uma gravação rápida e eficaz. São requeridas qualidades mentais – mais que criativas – que nem todo o músico que está habituado a tocar sempre ao vivo seguindo uma bailarina possui. Tal como um bailarino que está apenas habituado a improvisar e se vê obrigado a memorizar e reproduzir na perfeição e vezes sem conta uma mesma coreografia que não lhe pertence. O cérebro é estimulado de formas distintas e aquilo que é pedido a um bailarina quando improvisa não é, forçosamente, aquilo que lhe é pedido quando ele tem de reproduzir uma estrutura memorizada de forma exacta e mecânica. A esfera mental e a esfera intuitiva/criativa do cérebro são duas áreas que raros profissionais da música estão habituados a trabalhar em simultâneo.

· Aprendi também que a música ao vivo e em pleno improviso é de uma natureza oposta à música gravada, estática e pré-definida. Tentar misturar as duas é como unir a àgua ao azeite.

· Depois de muita lufa-lufa, tentativa de soluções variadas e uma sessão de estúdio exaustiva e frustrante, acabámos no ponto de partida que temíamos: o aparente vazio. Eu, o Hosny e o cd (além da responsabilidade de apresentar um espectáculo que faça justiça ao meu nome sem uma quinta parte das condições a que estou habituada).

· No entanto, existe algo que eu afirmo de forma recorrente aos meus músicos quando as condições que com que contávamos falham: Onde existe um artista, existe arte.

· Posso dançar ao som do vento, das areias em tempestade, da brisa ou até do silêncio sobre o qual eu crio a minha própria música. Basta a presença de um único artista para que momentos de ARTE possam acontecer. Tentando ser coerente com aquilo que eu própria afirmo com tanta frequência, decidi que daria o meu melhor e que o Hosny também o faria, apesar de ambos sermos obrigados a actuar sem chão.

· Tal como previa, a arte prevaleceu sobre as condições adversas. Junte-se à falta de “back-up” percussivo a existência de técnicos de som/luzes totalmente incompetentes e uma falta total de apoios com a qual me deparo sempre que venho a Portugal.

· Aqueles que foram, para mim, espectáculos caóticos e apresentados sem o mínimo de apoio musical ou logístico, acabaram por ser momentos fantásticos para as audiências que nos viram. Isto também se aplica aos programas de televisão onde fomos convidados e nos quais também me deparei com um ambiente geral de desalento e falta de profissionalismo (com muito raras excepções).

· Que acontece quando um grande chefe de cozinha tenta reproduzir um dos seus afamados pratos sem os ingredientes com que sempre o cozinha?! Em vez de trufas raras, azeite rico do Mediterrâneo e todos os condimentos necessários à concretização da sua obra de arte, o chefe tem ao seu dispôr um tomate e meia dúzia de ovos do aviário. Como reproduzir o nível artístico e a riqueza do sabor a que habituou os seus clientes quando nada do que ele necessita está ao seu alcance? Como dar alma a algo que está morto como é o caso de um tema gravado em cd? Como dar corpo melódico ao vazio?

· Os milagres acontecem quando acreditamos na sua possibilidade e no poder do talento, da energia, do amor de quem faz o que faz por vocação e com paixão/convicção. Esta foi a grande conclusão desta nossa passagem por Portugal. Criando milagres sem santos. Partindo do vazio para dar à luz momentos musicais plenos de musicalidade. Dando vida àquilo que não tem vida.

· Agradeço a presença e constante carinho de todas as alunas e público que fizeram parte deste milagre da “multiplicação da música”! A vossa presença e calor foram parte essencial desta arte tão peculiar e portuguesa de fazer omeletas sem ovos!

· WORKSHOPS

· Ensinar é uma das áreas que mais me apaixona e sei que, num futuro que ainda prevejo longínquo, quando deixar de actuar ao vivo, passar a informação, experiência e conhecimentos que tenho acumulado será um prazer e uma sequência natural da minha carreira. Poder despertar pessoas de todo o mundo para o prazer e riqueza de uma dança que é tão mal vista até hoje será sempre o meu maior objectivo. Diz-se que ninguém é Messias em terra própria e é bem verdade. Vejo o respeito e reconhecimento que tenho recebido no Egipto como esmagadoramente maior do que aquele que recebo sempre que venho ao meu próprio país.

· Há quem se sirva da dança para benefício próprio – propagando a imagem comercial e pobre da “Dança do Ventre” - e há quem prefira servir a dança para benefício da dança e dos bailarinos que a dignificam.

· As alunas presentes nos “workshops” foram simplesmente fantásticas e deram aos eventos um tom amoroso de partilha, beleza, aprendizagem e comunhão.

· O Hosny acompanhou brilhantemente todos os exercícios que fizémos e estabeleceu uma ligação sem palavras com todas as alunas que tiveram a oportunidade de improvisar com a sua “tabla” ao vivo e assim saborear um pouco das delícias de dançar na presença de um músico talentoso e experiente.


· Não poderei descrever o prazer que foi ensinar estes grupos de alunas e o ambiente maravilhoso que elas conseguiram criar. Quem me conhece bem sabe que sou extremamente sensível à energia e atitude das pessoas que me rodeiam e jamais estimulei ou tolerei competição entre alunas, mexericos e todo o tipo de inutilidades a que se assiste regularmente quando grupos de mulheres se juntam, especialmente em cursos de Dança Oriental onde a confusão entre EGO e ALMA se instala com assustadora frequência.

· Ter grupos de alunas simplesmente amorosas que ali estavam para aprender e partilhar em vez de competir entre si e perder tempo com mexericos e invejas foi o melhor presente que me podiam ter dado a mim e ao Hosny nesta nossa curta passagem por Portugal. A alegria, concentração e capacidade de trabalho das alunas não passou despercebida ao Hosny que acabou por comentar comigo como se tinha sentido feliz e realizado ao poder fazer parte destes workshops.
· Eu também me senti feliz e agradecida por ter recebido gente tão bonita e pronta para aprender e tenho de agradecer a cada uma das alunas presentes pela contribuição que deram aos eventos.
· Agradeço todos os emails e fotografias enviados por várias alunas mostrando, uma vez mais, o reconhecimento e carinho daqueles que seguem o meu trabablho e o valorizam. Muito obrigada a todas. As palavras de apoio, respeito e satisfação da vossa parte são o combustível que esta máquina humana que sou eu se alimenta.

·
Aparições na televisão portuguesa:

· Eu e o Hosny passámos por vários programas de televisão em Portugal.Em duas semanas, estivemos em cinco programas diferentes mas o mote e forma de trabalhar é comum a todos. Aterrei no aeroporto de Lisboa num Sábado às 7.30h da manhã e já estava a ser maquilhada para entrar em estúdio ás 9.00h dessa mesma manhã. Como tudo no nosso país, a televisão também mudou radicalmente e a forma de trabalhar das produções de há quatro anos atrás – altura em que deixei o nosso país – já não é a mesma das equipas que agora encontrei.
· O país mudou e muito! Foi necessário ir à televisão para me dar conta disso?!

· Embora não acompanhe minimamente a televisão portuguesa nem nada do que nela se faz durante os curtos espaços de tempo em que cá venho (excepção para o “Gato Fedorento” do qual sou fã), já me apercebi que nos encontramos no reinado do popularucho e do drama pessoal comercializável. Qualquer vítima desta sociedade que tenha uma história suficientemente trágica para vender, está a meio caminho do estrelato instantãneo e de aparecer num programa de televisão com pompa, circunstância e um tempo de antena que não é dado aos artistas do nosso país. Lágrimas e histórias deprimentos valem ouro neste novo país que eu desconhecia.

· O mal e o drama de estranhos acaba por ser um bálsamo para as maleitas do povo português afogado em desalento nos seus sofás adquiridos com empréstimos cujos juros já não conseguem pagar. Parece que a televisão portuguesa está , definitivamente, concentrada em fazer subir audiências a partir da exploração exaustiva do sofrimento alheio e isso não deixa grande espaço para aquilo que se faz de bom, bonito e “feliz” em Portugal ou no estrangeiro. A felicidade e aquilo que se constrói não vende. Só a infelicidade exposta em público parece render.

· A guerra de audiências e a era do “fast food” televisivo tocaram-me na pele de forma muito particular nesta minha passagem por Portugal. As entrevistas tiveram de ser realizadas em tempo “record” contado ao segundo para que a reduzida capacidade de concentração do público não se esgote num tema (resultando numa eventual mudança de canal à distância de apenas um toque no controlo remoto do televisor), as informações relativas aos eventos que eu vinha promover acabaram por não ser passadas devido à pressa de passar a um novo tema e as danças que apresentei foram consideradas demasiado “longas” porque tinham cerca de 3.30mns... Tres minutos e meio parece ser, de repente, uma eternidade para quem vê dança na televisão mas somente um segundo se esses tres minutos e meio forem aplicados a descrever a forma assustadora como fulano tal agride a sua avózinha à machadada... que país estamos nós a construír?! Confesso que estou mais preocupada que nunca. Embora não viva em Portugal, tenho família, amigos, alunos e tanta gente que me quer bem, que eu adoro e que cá vive.

· Quero regressar a um país do qual me orgulhe. Este passará a ser o meu novo sonho na longa lista que guardo na algibeira.

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