Saturday, June 27, 2009


Cairo, dia 6 de Junho, 2009

“Grande espectáculo no Nile Maxim – o começo de uma nova Era...”


Uma nova Era tem início...na minha Vida.
A noite passada tive um dos meus sonhos premonitórios que me anuncia mais invejas e males de olhado fortíssimos...nunca se cresce, evolui e goza de sucesso sem termos de andar de mão dada com a inveja e a cobiça. Este é o preço mínimo a pagar pelas nossas conquistas. O sonho relembrou-me dessa fria verdade que tanto me tem custado aceitar.
A VIDA pode ensinar-nos muitas coisas. Experiências das quais se retiram conclusões, erros repetidos com os mesmos resultados, ciclos que se completam e fecham diante dos nossos olhos incrédulos face ao rápido passar do tempo. É lugar comum afirmar que todos envelhecemos, mas nem todos crescemos. Há muito boa gente a quem crescem cabelos brancos mas nunca o juízo. O tempo passa pela gente comum como um vento suave que não nos toca directamente nem altera quem somos, a nossa estrutura molecular, o estado da nossa (in)consciência.
Ter vindo sozinha viver e batalhar pelos meus sonhos foi a decisão mais difícil da minha vida – até agora – mas também aquela da que mais me orgulho e a qual não trocaria por nenhum sucesso garantido nem conforto que o meu país Natal me pudesse oferecer. Senti que Portugal era demasiado pequeno – geografica e artisticamente – para tudo o que quero realizar e tinha razão. Cada vez que visito o meu país e vejoo estado em que se encontram as Artes, em geral, e a Dança Oriental – em particular – fico triste por quem lá trabalha e feliz por ter escapado à vulgarização e comercialização barata da arte que eu aprendi a amar e pela qual já tanto sofri e sorri.
Das muitas coisas que aprendi, por experiência própria, foi ter a certeza de que na vida não existem certezas (será isto uma contradição?!) e que a vida dá muitas, muitas, muitas e inesperadas voltas.
Depois de tres anos de trabalho no Cairo, incessantemente provando o meu valor próprio e gerindo sozinha orquestras, burocracia, contactos com homens da pior estirpe e espectáculos diários, vejo-me apresentando o meu primeiro espectáculo no famoso cruzeiro “Nile Maxim”, em Zamalek.
A história que me trouxe até aqui é demasiado rebuscada para relatar neste diário. Tão incrível e absurda que nem eu mesma pareço acreditar na realidade que vivi. Ver um porco a andar de bicicleta já não me surpreenderia e digo isto sem gozo nem ironia. A mais pura verdade: já nada, absolutamente nada me impressiona ou choca.
Em tres anos de espectáculos, aprendizagem do dialecto egípcio, luta diária e incessante e muitas desilusões pelo caminho, ganhei também uma preciosa capacidade de contornar obstáculos e de não me deixar tocar demasiado pelo sofrimento e pelos episódios clássicos de gente em quem confiava e que me apunhala pelas costas com o sangue frio de uma barata. Espero o melhor e o pior de todos os que rodeiam e quando os choques embatem e seria óbvio ver-me de rastos, eu reergo-me da queda sem deixar que os meus braços cheguem ao chão. Respiro fundo, perdoo no momento imediato e sigo em frente sem verter uma lágrima. Desenvolvi esta carapaça em tais proporções que já duvido se é possível voltar a sentir o gosto de uma lágrima. Será bom sinal já não conseguir chorar face às maiores tristezas e desilusões!? Hmmmm.....
“Quem diria?! Eu, actuando com a minha nova orquestra e bailarinos no famoso “Nile Maxim” e sem passar pela cama de nenhum gerente ou senhor do poder...uau!Os milagres acontecem, de facto!”
As duas bailarinas com que eu partilho o local são duas referências da cena internacional do Cairo e duas bailarinas que eu respeito por razões distintas: Randa Kamel (egípcia) e Asmahan (argentina).
Nunca penso em termos de competição mas, se o fizesse, estaria a competir com os pesos mais pesados da melhor categoria de bailarinas no Egipto ( ambas com cerca de 15 anos de avanço em relação a mim em termos de presença e experiência no mercado) e isso não me deixa ansiosa ou com receio...deixa-me excitada e com vontade de provar, mais uma vez, quem sou e como amo esta arte que me escolheu. O desafio é irresistível e não me amedronta.
Entro no cruzeiro com a minha assistente egípcia– maquilhada de forma tão exagerada que se parece com uma “drag queen” mas feliz e deslumbrada por estar ali ao redor de tantos artistas e num local de prestígio – e uma colecção de malas impressionante. Os meus trajes, adereços, maquilhagem e chá, os trajes do meus bailarinos (sim, agora tenho bailarinos egípcios no meu espectáculo!) e respectivos adereços...uff!
Entro na sala onde, tantas vezes, vim assistir aos espectáculos da Randa Kamel e da Asmahan e, de forma estranhamente familiar, sinto que este local me pertence. Piso o palco, faço um teste de som e ensaio com os meus bailarinos (sabe bem dizer “os meus bailarinos”...:) J as duas coreografias que iremos apresentar juntos daí a uma hora numa sala expectante cheia de clientes, gerentes e donos do local.
“Depois de tantas voltas, como vim aqui parar?!”
Dou uma vista de olhos, pela primeira vez, no camarim do “Nile Maxim” que é, como imaginei, no porão do barco. Não sou fã de porões e rés-do-chão. Gosto de altitutes, sou adepta do “lá em cima” em oposição ao “lá de baixo” mas isso, perante os nervos do primeiro espectáculo neste local, não me aflige por aí além.
Depois do ensaio com os bailarinos, desço até ao meu camarim e tento convencer a minha assistente a desfazer as malas e a começar a preparar o trabalho que se segue. Ela está boquiaberta, observando tudo e todos e deslumbrada com a minha maquilhagem, as minhas conversas com os músicos que vêm, um a um, cumprimentar-me ao camarim, os ensaios e acertos de última hora com os bailarinos...ela pensa em tudo, menos no que há a fazer...

O que há a fazer?
*** Desfazer malas e colocar os quatro trajes do espectáculo em cadeiras separadas com os respectivos adereços e sapatos para que as mudanças de roupa possam ser rápidas e não vá para palco dançando Saiidi com as sandálias que usei no estilo de Alexandria...
*** Maquilhagem e secador de cabelo preparados. A minha água e o meu chá ali à mão e toalha para me enxugar de cada vez que vier trocar de roupa.
*** Últimos recados e acertos com a orquestra e bailarinos. Peço aos bailarinos um último ensaio improvisado em frente às casas de banho. Para uma insegura e perfeccionista como eu, os ensaios nunca são demais. Diz-se que o Fred Astaire era obcecado por ensaios. Era capaz de repetir a mesma peça de dança umas quinhentas vezes...embora não seja o Fred Astaire nem encontre grandes semelhanças entre nós, compreendo esta obsessão.
*** Deixar programa do espectáculo escrito em inglês – para mim – e em árabe – para músicos e bailarinos – nos respectivos camarins para que a coordenação de entradas e saídas bata certo e todas as músicas sejam interpretadas no local certo. Embora o resultado do espectáculo pareça fluido e simples para o público que nos vê, existe um cuidado e uma estrutura sem os quais o alinhamento do show vai por água abaixo. Existem tantas linhas condutoras e trabalho invisível aos olhos do público...

Qual o trabalho que esteve por trás do espectáculo?
*** Esta é complicada de se responder. Começo por referir toda a experiência acumulada que tenho acumulado e que me fez chegar até aqui e ter na minha mão e sob a minha coordenação um grupo de 13 músicos de alto gabarito e tres bailarinos profissionais que actuarão a solo e comigo.
*** O facto de ter querido introduzir bailarinos no meu espectáculo dançando comigo e não apenas como introdução à minha entrada ou preenchendo espaços vazios durante os quais eu trocaria de roupa também foi uma carga de trabalho acrescida da qual não me arrependo.
*** Novas coreografias com os bailarinos, ensaios, trajes para mim e para eles nas nossas actuações conjuntas e escolha de repertório novo.
*** Ensaio com a orquestra na qual incluí alguns novos elementos.


Como foi trazer bailarinos egípcios para o meu espectáculo?


*** Prefiro trabalhar com bailarinos – rapazes – do que com bailarinas egípcias.
Já tive a oportunidade de actuar com ambos e, sempre que existe um grupo de bailarinas egípcias, acabei por assistir a discussões sem sentido, lutas de egos e vaidade a meio de ensaios – coisa que eu jamais permitiria, caso o grupo me pertencesse – e batatada de meia noite porque a fulana fez um comentário sarcástico em relação às mamocas da colega ou a sicrana se “fez ao bife” ao namorado da outra a quem as outras colegas chamam pega! Demasiado para mim...o meu cérebro não processa tanta futilidade e perda de tempo concentrada num só contexto e ocasião!
Elas são, por norma, mais preguiçosas, volúveis e problemáticas do que os rapazes. A minha forma de trabalhar é bastante descontraída mas exigente e seca. Mãos à obra e jamais perder tempo com elementos e assuntos que não estejam ligados à tarefa que temos em mãos. Por essa razão, eu prefiro trabalhar com homens na grande maioria das vezes...por mais que isso me custe admitir. A minha forma de trabalhar é muito similar àquela que a maioria dos homens adopta e entendemo-nos na perfeição. Gosto de profissionais, pessoas competentes e com ética de trabalho e, acima de tudo, concentrados no trabalho que se lhes apresenta e produtivos.

*** Outro aspecto positivo acerca dos bailarinos egípcios é a rapidez com que trabalham, memorizam, processam a informação e executam o que lhes é pedido. “I´m in heaven...”J
Ensaiámos no estúdio do meu querido amigo e professor Mahmoud Reda e coreografámos duas músicas – uma dança moderna com hip hop e jazz e outra Saiidi – numa tarde. Poucas palavras, nada de mexericos e risadinhas tão característicos dos meios femininos e uma concentração absoluta no trabalho. Assim dá gozo trabalhar.

Qual o maior gozo deste novo trabalho?

*** Começando pelo local em si que é um novo desafio para mim, o “Nile Maxim” e pelo facto de estar a actuar paralelamente a duas bailarinas conceituadas no mercado egípcio e internacional. Isso é uma honra para mim.

*** Trabalhar com coreografia – eu improviso a totalidade dos meus espectáculos, sempre... – e bailarinos profissionais com quem me posso ampliar como artista e explorar novas ideias.
Apresentar uma música de dança moderna, hip hop e jazz, tão longe da Dança Oriental que as pessoas esperam ver-me apresentar...uma bela surpresa para quem não sabe que eu danço muitos outros estilos, para além do Oriental.

*** Ter uma orquestra melhor do que a habitual com quem também posso experimentar elementos e músicas novas que não fazem parte do meu repertório usual.

*** Contando com a participação dos bailarinos, poder criar “tableaus” de dança e canto inéditos nos quais tenho a colaboração deste rapazes tão talentosos. É maravilhoso trabalhar com um grupo onde toda a gente é criativa e produtiva. Tudo o que faço e tenho dentro de mim como pessoa e artista se amplia e novas janelas se abrem devido à presença deste novo contingente humano.

*** Acima de tudo, o gozo de enfrentar num novo desafio, audiências e um nível de exposição bastante maior. Sim, existem os nervos à flor da pele, a insegurança e os medos de não estar sempre “à altura”, as dúvidas quanto ao que o futuro trará mas nada disso se equipara à excitação de uma nova aventura que nos lança, claramente, em voos que merecemos viver e para os quais tanto trabalhámos.

*** O que é preciso ver?

É muito comum ver-se alguém bem sucedido e invejar-se o lado solar – como eu lhe chamo – desse sucesso e das suas vitórias. As pessoas adoram, odeiam e cobiçam o sucesso alheio e apegam-se apenas às imagens de sonhos realizados, “glamour” e vitórias mas ninguém está interessado ou tenta invejar todo o trabalho, sacrifícios, perseverança e sofrimento que foram necessários para se chegar até ao cume de uma das muitas montanhas deste mundo em crescimento contínuo.
O lado lunar – secreto, na maior parte das vezes – do sucesso não interessa ao público, apenas o brilho encandescente do sucesso.


Sei, por experiência própria, que tudo tem um preço. Sei o preço que tenho pago pelo meu sucesso e não me arrependo de nada porque jamais vendi a alma ao diabo e me orgulho de cada lágrima e cada sorriso. Apelo apenas a que todos os que cobiçam o sucesso alheio tentem ver o trabalho árduo que está por trás de todo esse esplendor e, finalmente, reconheçam os seus próprios sonhos e lutem por eles sabendo que o preço a pagar pode testar as suas forças, crenças e capacidades humanas até ao limite.
Boa sorte a todos os que têm a coragem de se erguer do seu confortável estado de inércia e arregaçam as mangas face às conquistas que escolheram para si.

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