Cairo, dia 27 de Maio, 2009
“Concerto nocturno no elevador...só podia ter acontecido no Cairo!”
Regressei a casa exausta. Há dias assim...sem razão aparente, cada passo nos pesa como se de chumbo se tratasse e uma noite de espectáculos à qual estou habituada acaba por parecer uma maratona eterna durante a qual nem sequer pude parar para beber água ou respirar fundo.
Há noites assim...apesar das audiências calorosas, da inspiração que chegou quando tinha de chegar e das notas tocadas na perfeição e nos momentos adequados, não pude evitar sentir o cansaço inexplicável que me assaltou ao findar mais uma noite de trabalho.
O meu “chauffer” , recentemente re-admitido ao trabalho, recolhe-me e resgata-me de uma avalanche de pessoas que, como o Verão cairota sempre anuncia, irão inundar as ruas desta cidade pela noite fora. O Cairo pertence aos bichos da noite. Não parece nunca ter sido uma cidade diurna, tanta é a sua intolerância ao calor matutino, à luz excessiva que fere os olhos e quase os impede de ver o caos em que a cidade se transformou. A noite é bondosa, flexível, mostra o melhor que a cidade tem para oferecer e a sua face luminosa no meio da escuridão. O Cairo poderá ser mãe do mundo mas a noite é mãe do Cairo, desejando sempre enxergar apenas aquilo que de melhor o seu filho pródigo possui.
Assim que entro no carro, sei que estou envolvida numa película protectora de metal, ar condicionado e música escolhida a dedo pelo Dj de eleição do condutor. Sinto as minhas pernas pesadas, os meus pés doem-me e os meus cabelos estão em consciente desalinho.Estou pronta para ir para a cama, contrastando com os noctívagos que observo do interior do carro, vestidos a rigor e prestes a invadir cafés, restaurantes, night-clubs e esplanadas da cidades. Nem as pontes escapam...existem negócios de aluguer de cadeiras e venda de tremoços nos passeios de todas as pontes da cidade. Julgando pelo sucesso destes negócios inusitados, serões passados num passeio rodeado pela vista do rio escuro e de milhares de carros que passam num frenesim é o ideal de muitos casais, famílias e solitários excêntricos. O orçamento não dá para mais e, no fundo, o potencial romântico e de beleza de um local reside – queremos acreditar, a bem da nossa sobrevivência! – no olhar daquele que goza este mesmo local. Podemos sempre escolher ver a beleza ou a fealdade e os egípcios são exímios malabaristas de conceitos estéticos. Ninguém no mundo poderia ver beleza nas coisas impressionates nas quais os nativos deste país encontram fascínio..
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3.15h da manhã. Eu, a bailarina, vista como prostituta pela populaça e pelos que deveriam saber melhor, rumo a casa dormitando que nem um anjo abandonado ao seu cansaço. Por outro lado, mulheres cobertas dos pés à cabeça, ruminando propostas indecentes e lançando olhares que lhes valerão generosas quantidades de dólares, caminham por este noite dentro, prontas para o engate. Um clássico do submundo do Cairo, de noite e de dia! As aparências enganam, sempre enganaram, especialmente em sítios onde a verdade é incómoda, agressiva e de extremo mau gosto. Pinte-se tudo, do melhor ao mais aberrante, de cor de mel e finjamos todos crer nas doces mentiras que nos rodeiam.
Adormeço no caminho para casa e sou acordada pelo condutor que me indica, em voz baixa de cautela, que já chegámos a casa.
Entro no elevador e nem quero acreditar que estou, de facto, a chegar a casa!Parece-me uma alucinação de tão boa que é a perspectiva de me lançar à minha cama dentro de dois minutos...
De repente, como não é raro acontecer, o elevador pára bruscamente emitindo um som que deixa bem claro, embora eu não o queira crer – que acabara de ficar presa, uma vez mais, na caixa de mental e correias mal amanhadas a que chamam elevador. “Oh, não...”
Não existem alturas ideais para se ficar preso no elevador mas que este acidente de percurso aconteça às 3.30h da manhã, ao encerrar um dia e uma noite extenuantes é a cereja em cima do bolo, o ponto culminante de um drama que não pode terminar sem uma tragédiazinha “Cairo style”.
O fenómeno já não me é estranho. Clarifico: quando penso que atingi os meus limites de paciência, perseverança, resistência à ignorância, assédio sexual e afins, poluíção, trânsito, níveis de corrupção e estupidez generalizada, eis que me surge um episódio mágico – por certo, requerido por alguns dos meus inimigos de morte, se os tiver! – que vem pôr à prova tudo aquilo que eu pensei que não suportaria. Os limites que imaginamos ter como nossos são bastante mais flexíveis do que alguma vez poderíamos imaginar!
Uma das coisas boas de viver no Egipto – já que acabei de citar as piores! – é poder gritar à vontade em locais públicos e ninguém achar anormal que os decibéis que largo da minha portentosa garganta atinjam níveis tão altos como as sirenes das ambulâncias de Nova Iorque. Posso não saber fazer uma imensidão de coisas mas, gritar, gritar a plenos pulmões...ah...isso eu sei e agradeço os anos de Conservatório de Teatro e Cinema por me terem ensinado como projectar a minha voz de forma a que todo o bairro me possa ouvir, caso me veja presa num elevador às 3.30h da manhã sem perspectivas de saír dali nas próximas horas.
“Abdul Wahaaaaaaaaaaabbbbbbb......” – comecei eu no meu tom operático, ignorando – por trágico-cómicos momentos com laivos “baladi” que já adquiri de tanto escutar, falar e viver por cá.
Também devo acrescentar que o Abdul Wahab é o meu famoso porteiro/guardião da moral e “suposta” segurança do edifício e seus moradores/ espião de vários clientes que faz pequenas fortunas dando conta da vida de uns quantos inquilinos/ bufo que poderia ser mestre da antiga e nova PIDE portuguesas e ávido mestre da colecta de dinheiros de terceiros por dá cá aquelas palha. Agora que o apresentei e fiz honra à sua importante presença, convém também dizer que é ele quem deve ser acordado a meio da noite no caso de alguém – como eu! – ficar preso no elevador do prédio.
Supostamente, e de acordo com a experiência já vivida, ele escutar-me-á gritar a plenos pulmões e encontrará uma solução para me tirar do elevador, possibilitando-me assim a tão ansiada chegada a casa.
Não sofro de claustrofobia, é essa a minha sorte(sorte?! Será que eu apliquei a palavra sorte a esta situação?!”). Também não sou fã de elevadores nem de ficar presa dentro deles a meio da noite mas não entro em desespero nem me rendo à histeria, como seria de esperar se eu fosse uma rapariga egípcia (sim, o feminino egípcio preza o seu lado histérico e usa-o magistralmente para se defender de ataques masculinos e conseguir quase tudo o que quer).
Começo a ficar preocupada quando os tons de chamamento do porteiro passam de altos e informais a estridentes e irritados. “Será que o Abdul Wahab foi passar a noite com uma porteira amante do prédio nº14? Será que o Abdul Wahab se rendeu aos encantos mórbidos e ilusórios do Prozac e tomou uma dose de elefante que lhe apagou o maçarico?!”
Tudo me passou pela cabeça e comecei a colocar a hipótese de passar a noite no elevador. Telemóvel sem sinal de rede, o porteiro ausente e nenhum dos meus vizinhos dando-se ao trabalho de acordar e verificar que tipo de lunática grita pelo nome do porteiro às 3.30h da matina. As perspectivas não são muito animadoras, é certo. No entanto, não me chamam guerreiro-macho – os meus músicos e todos os que trabalham de perto comigo aqui no Cairo – por dá cá aquela palha! Ganhei esta reputação por liderar sempre pelo exemplo e agora, no meio desta noite escura e extenuante em que ainda consigo mover as goelas a todo o vapor- não será altura para negar o título que me foi dado com tanto carinho e até admiração.
Instinto de sobrevivência é algo que já adquiri há tempo suficiente para saber que, em situações extremas ou de desespero, não há nada pior do que “stressar” e deixar os nossos medos aflorarem. Não! Manter a cabeça e o sangue frios e pensar positivo. Ver o que podemos fazer para solucionar a situação e, caso nada esteja na nossa mão, entregar o caso a Deus e tirar o máximo partido da situação. Afinal, a vida são só dois dias!
Verifiquei o nível de limpeza do chão do elevador para eventual situação de acampamento. Nada de muito assustador se comparado com a perspectiva de passar a noite inteira de pé (nada aconselhável por causa do eventual aparecimento de varizes, derrames e dos tais ataques histéricos que, com certeza, me visitariam caso eu tivesse de ficar de pé uma noite inteira).
Não é altura de me armar em esquisita, certo?
Abri a minha mala de maquilhagem e vi que trazia uma garrafa de água ainda cheia, um dos livros que ando a ler e uns lenços que uso como adereços para os espectáculos. Portanto, vistas bem as coisas, o panorama não estava assim tão ruim: a água garante a minha sobrevivência e bem-estar até ao amanhecer, o livro mantém-me entretida e os lenços servirão de mini-lençóis com os quais eu cobrirei este chão de limpeza duvidosa. “No problem!” No fundo, este acampamento “in door” inesperado até pode ser uma experiência fascinante (?!).
Tudo seria perto, muito perto de um mar de rosas se a luz do elevador não se tivesse apagado, já estava eu sentadinha no meu canto de eleição (quem diria que este elevador até era confortável?!) e envolvida na fascinante leitura do meu livro. “Oh, nãoooooooo...”
E agora, sem luz nem velas que possam criar um ambiente romântico entre mim e a noite estrelada que eu não posso ver, sem possibilidade alguma de entretenimento e com a nítida impressão que esta seria uma noite vazia, escura e lenta?...
Não desesperar. Regra nº 1 que se aprende quando se vive sozinha num país-selva como o Egipto onde sabemos que ninguém nos levanta depois de cada queda senão nós mesmos. Quem age de cabeça quente, perde e este mundo, em particular, é só dos mais fortes. A natureza do lado de cá do planeta terra é mais cruel e implacável que aquela que milhões de turistas observam nos safaris africanos ou na Amazónia. A lei do mais forte nunca se fez sentir tão friamente como no Egipto.
Sabendo que não adormeceria, optei por ensaiar duas das músicas que estou a preparar para o meu novo espectáculo. Depois de ter repetido as músicas dezenas de vezes e aproveitando o facto de já ter a voz aquecida e o cérebro mais alienado do que os polícias deste país, desatei a cantar músicas árabes, inglesas, espanholas, etc. Basicamente, tudo o que me veio à cabeça do meu vasto reportório musical ganhou vida e eco naquele elevador solitário que me fazia companhia numa noite em que eu daria tudo para estar na minha abençoada caminha.
Magicamente, como se um voz tivesse surgido do Além a fim de me dar alento e calor, ouvi alguns sussurros felizes vindos do lado de fora do elevador. Pelo que me apercebi, o primeiro sussurro dizia :” Linda, a voz dela é linda...” (em árabe)
Sim, coloquei a séria hipótese de estar a alucinar.
Não estava. Quando, pela segunda vez, escutei um comentário à música que acabara de cantar, apercebi-me que havia gente do lado de fora do elevador que, ao contrário de mim, não prezavam a sua cama e não tinham qualquer urgência em sair da audiência ou fazer-me sair a mim do elevador.
“Abdul Wahab?! És tu quem está aí?” – Perguntei eu ainda com o receio de que aquelas vozes fossem criações da minha exausta mente.
Seguiu-se um silêncio no qual eu pude sentir a respiração pesada de duas pessoas ou mais e sussurros imperceptíveis mas claros e muito próximos de mim.
“Quem está aí?! Abdul Wahab?!” – Continuei eu, já claramente irritada ( a teoria do sangue frio não dura para sempre...).
“Sim, madame. Sou eu. Quer sair daí?!” – Respondeu ele com uma passividade e um tom tão tranquilo que me enervou ao ponto de querer trepar às paredes do elevador.
“Claro que quero saír daqui! Fartei-me de gritar por ti e nunca me dei conta que estavas do lado de fora do elevador...porque não me disseste que estavas aqui?!”
“O Mohamed (seu irmão) veio chamar-me porque ouviu a madame cantar tão bem que queria que eu e o Abdo (o outro irmão) também a escutássemos...e quando aqui chegámos ficámos felizes porque a madame tem uma voz muito bonita!”
“O quê?! Vocês estiveram do lado de fora do elevador este tempo todo a ouvir-me cantar e não me disseram nada?! Vocês são estúpidos ou estão ou beberam?! Tirem-me daqui imediatamente.” Concluí eu em total incredulidade por descobrir que estes tres personagens tinham assistido ao concerto “ao luar” sem nunca me ter tentado ajudar a sair dali para fora.
Ignoraram os meus gritos e pedidos de ajuda mas vieram quando me ouviram cantar e não lhes passou pela cabeça que aquele concerto improvisado era apenas uma estratégia de sobrevivência que duraria até ao momento em que alguém com um cérebro humano me viesse “salvar” do elevador encalhado.
Muito a contra gosto, lá arranjaram maneira de abrir a porta encalhada do elevador, meu parceiro de devaneios nocturnos, e ouviram um raspanete monumental para o qual eu pensava que já não teria energia.
Enquanto eu agozinava no interior daquele elevador escuro, cantando para não enloquecer, aquelas tres personagens de banda desenhada estavam sentadas do lado de fora do “concert hall” admirando a beleza da minha voz e a escolha sofisticada do meu repertório do alto das 4.00h da manhã... Será isto normal?
Como em tudo o que está ligado ao Médio Oriente, o termo “normal” não se aplica a nada. “Normal” é relativo, inócuo, insignificante, uma aberração da linguagem humana que, de modo algum, se aplica à realidade dos seres que habitam esta zona problemática e fascinante do mundo.
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