Saturday, June 5, 2010

Cairo, dia 5 de Junho, 2010

O que já mudou em mim – Joana pós-Egipto


O ser humano é condicionado e condicionável. Disso não tenho a menor dúvida.
O meio ambiente que nos rodeia e as suas pressões específicas moldam comportamentos, gostos, atitudes e até – ouso dizer – a forma como o nosso cérebro funciona e reage às circunstâncias.

Desde que cheguei ao Egipto (como residente, como artista trabalhando entre egípcios e árabes), muito mudou em mim.
Eis algumas das coisas que posso destrinçar do meio do caos ordenado em que se tornou a minha vida:

1. Já não saio à rua vestida como quero. Cubro-me com roupas e óculos de sol (faça sol ou não, de Inverno e de Verão) para minimizar as possibilidades de assédio sexual.

2. Já não cumprimento homens com um beijo na cara. Na maior parte das vezes, nem um frio aperto de mão entra na equação. Questão de hábito (homens e mulheres não se tocam, fisicamente, em países como o Egipto) e protecção instintiva contra – mais uma vez! – o assédio que chega das mais variadas formas.

O toque é altamente erótico para os egípcios/árabes.

Mulheres tocam outras mulheres e homens tocam – e beijam abundamente – outros homens mas não existe contacto físico entre sexos diferentes (excepto na intimidade de casais (i)lícitos).

Muitas mulheres até usam luvas compridas para não correr o risco de roçar os dedos das mãos pela mão de um homem que lhes passo um saco de supermercado ou que as atenda na farmácia. O exagero e a loucura chegam a este ponto.

Por essa razão e já sem pensar, eu deixei de cumprimentar homens como sempre fiz. Inclusivamente quando saio do Egipto e estou em países em que estas normas “anormais” não se aplicam.
Reacção já mecanizada.

3. Já não levo nada nem ninguém a sério. Arma essencial de sobrevivência no Egipto.

4. Não espero profissionalismo ou perfeccionismo da parte de ninguém. É uma luta inglória que só me esfrangalha os nervos a mim.

5. Começo a achar estranho se vejo um estrangeiro na rua. Mais estranho ainda se estiver vestido com braços ou pernas a descoberto. Dou por mim a olhar para o estrangeiro como se fosse um extra-terrestre (tal como os egípcios olham para mim).

6. Rio-me de tudo. Inclusivamente das pequenas e grandes tragédias do dia-a-dia. O sentido de humor e a loucura são o chão que me permite continuar a viver aqui sem ter um ataque cardíaco.

7. Sou um radar de duas pernas. Habituada a defender-me até do ar que respiro, tornei-me numa espécie de radar de frequências. Desenvolvi olhos em todos os lados e consigo cheirar os perigos, ler o pensamento das pessoas que me rodeiam e ver no escuro. Estas são apenas algumas das qualidades que cinco anos de vida no Médio Oriente me ofereceram.

8. Sentido de sobrevivência agudo. Razões óbvias.

9. Audição hiper desenvolvida. Claro que será fácil entender que este sentido – a audição- teria de ser o mais desenvolvido mas nada poderia prever o quanto ele se apurou. Consigo escutar os mais mínimos sons, dissonâncias, tons fora de tom e detalhes ínfimos apenas perceptíveis aos gatos e cães (serei eu um vampiro?).

10. Uma atitude de defesa em relação às pessoas que me rodeiam. Por ser extremamente emocional, esta defesa é facilmente quebrada se eu sentir que tenho uma boa pessoa na minha frente mas, por norma, a minha armadura e escudo estão em riste tentando evitar mais ataques do que os que já sofri.

11. Perdi todas as minhas certezas, ideologias, crenças. O Egipto e a experiência de vida que nos dá arrebata-nos de tal forma que a nossa estrutura, como seres humanos, cai por terra.

Tendo visto o pior do ser humano – e, raramente, o melhor! – e tendo já vivido tanta coisa chocante (para o bem e para o mal), sinto o horror da nítida verdade: O ser humano é capaz de TUDO.

12. Ganhei o bem mais valioso: A capacidade de PERDOAR as sombras dos outros. A capacidade de NÃO JULGAR. A nobre consciência de que todos fazem o melhor que sabem e podem (mediante o seu nível de consciência e feridas).

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