Vizinho que recita o "Corão"...
Posso escutá-lo a partir da mesa onde me sento para trabalhar no meu livro. O vento de uma tempestade de areia que se anuncia com doçura zumbe lá fora, os pássaros dançam enlouquecidos e a voz do vizinho do andar de cima embala-me as mãos, confundindo a escrita com a dança.
Recita o "Corão" com uma bela e pacífica voz. Imagino-o prostrado, joelhos assentes num tapete persa ou beduíno, incenso queimando por cima do televisor que a sua esposa cuida como a um filho indefeso.
Quando a voz e o coração do recitador são belos, as palavras gramática e foneticamente perfeitas do Sagrado "Corão" soam a beijos de mãe ou a sílabas suspiradas pelo nosso amor, ao nosso ouvido.
Cansei-me da mecanização/banalização do "Corão", agora presente onde - outrora - estava música e riso espontâneo. Cansei-me da falsa religiosidade e do uso do "Corão" como atestado de uma virtuosidade quase sempre ausente. Cansei-me do jogo de aparências deste país mas não me cansei da BELEZA ainda existente por baixo das pedras dos monumentos faraónicos ou do espírito de alguns egípcios que, sem razão nem benefícios para o seu estatuto social, recitam palavras do Profeta Maomé ou quaisquer outras que exalem PAZ, LUZ e TRANQUILIDADE.
Apago as luzes e o sistema de som ruidoso da minha mente. Escrevo mais um pouco, bebo o chá que me assiste e respiro fundo. Ouço o meu vizinho "muezzin" como quem ouve Om Kolthoum ou o chamamento de um anjo. Porque os anjos andam por aí, ainda que confundidos e meio perdidos no meio da multidão de demónios mascarados com asas e auréolas feitas de fumo.
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