Perguntam-me porque vivo no Cairo!!!
É frequente dividir as reacções à cidade do Cairo em duas classes bem demarcadas: as do que odeiam a cidade e dos que a amam.
Creio que esta é uma forma simplista de colocar a questão.
Para mim, o Cairo odeia-se e ama-se, simultaneamente.
A sua complexa natureza, diversidade de contrastes, riqueza assim o exigem. Nela está contido o miraculoso e o monstruoso. Tal como a natureza Humana, o Cairo não se deixa catalogar por bonzinho ou mauzinho. Os cowboys e os índios são uma e a mesma pessoa, tornando a vida por cá um tumulto de sensações, choques, aprendizagens que podem elevar-nos ou, simplesmente, enlouquecer-nos.
Ontem à noite recordei porque AMO-ODEIO esta cidade e porque cá vivo.
Assisti a mais um espectáculo sufi no Palácio "El Khoury" (na zona do Hussein, onde também se encontra o famoso mercado de "Khan el Khalili" ) e participei numa sessão se "zaar" no coração do Cairo (numa das muitas zonas onde os agentes turísticos e "amigos" egípcios não nos levarão, nem em sonhos).
Ter músicos egípcios como amigos tem destes privilégios.
O espectáculo sufi acrescenta sempre ALGO ao que eu já sabia. Apercebo-me do PORQUÊ deste espectáculo ser patrocinado pelo Estado egípcio. Sendo sufi e, exclusivamente apresentado e criado por HOMENS, o teor do mesmo é RELIGIOSO, MUÇULMANO.
Para quem não entende as letras das canções apresentadas, esse pormenor passa ao lado. O pessoal quer apenas ver homens girando com as suas saias redondas e coloridas. Para a maioria, trata-se apenas de um espectáculo visual. Para mim não.
As letras louvam o Profeta Mohamed e Alá, envergando símbolos muçulmanos discretamente imbuídos de uma Sabedoria mais antiga que vê o Ser Humana como uma partícula dançante de um Universo também ele dançante.
Aprecio a ALMA de alguns dos bailarinos de "tannoura" ( quer dizer, literalmente, "saia") e músicos. Mirando em direcção ao céu, entoando cânticos de amor apaixonado a Alá, é fácil entender porque este é um espectáculo à parte da cena PROÍBIDA ("haram") onde a Dança Oriental se encontra como Senhora e Rainha. O mundo patriarcal que louva a um Deus e a um Profeta continuam a sobrepor-se à existência inegável de uma forma de ADORAR a VIDA feminina. Sendo também um espectáculo de teor muçulmano, conforma-se com a maioria e com o poder instituído. É perversa esta relação da ARTE com a POLÍTICA.
Depois dirigimo-nos para uma sessão de "zaar", não daquelas que fazem para turistas ver (já de si, muito raras) mas uma sessão espontânea que se pratica na mesma casa há muitas gerações.
Chamo ao "zaar" o psicólogo para o povo. Mulheres (e alguns homens) chegam de cada bairro em determinados dias da semana e pagam a músicos e cantores para as libertarem de tudo o que de negativo levam dentro de si. Para os mais supersticiosos, trata-se de um exorcismo. Os demónios e espíritos maléficos ("djinns") que penetraram no corpo daquela pessoa são libertados/expulsos através da música e da dança. Gosto da ideia!
Para um observador atento, não é difícil perceber que este ritual é um salva-vidas numa sociedade em que a maioria das mulheres ainda vive na pobreza, em ambientes de violência, sem amor ou realização que não seja a de procriar.
Através da música e da dança, libertam pressões, tristezas, tragédias, feridas abertas, raivas, revoltas internas que não ousam expressar de outra forma e por aí fora (que isto de SER MULHER no Egipto tem MUITO que se lhe diga).
Mais curioso ainda é que os mais conceituados músicos e cantores do "zaar" são MULHERES.
Elas tocam percussão e cantam com as vozes poderosas construídas de muito sofrer e viver, as mãos gordas e monumentais que mais parecem frangos caseiros, os olhos negros penetrantes de cumplicidade na alegria e na dor.
Não pude deixar de pensar na diversidade e riqueza imensa deste país, desta cidade. Aos olhos do estrangeiro, turista superficial, trata-se apenas de caos e repressão. Para quem QUER conhecer a fundo e abre o coração a este solo mágico, as REVELAÇÕES são imensas, lindas, indizíveis.
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